segunda-feira, 30 de agosto de 2010

Crise do Direito do Trabalho.

Murilo Sampaio

Nosso tempo.
Este é tempo de partido
Tempo de homens partidos.
Em vão percorremos volumes,
Viajamos e nos colorimos.
A hora pressentida esmigalha-se em pó na rua.
Os homens pedem carne. Fogo. Sapatos.
As leis não bastam. Os lírios não nascem da lei.
Meu nome é tumulto, e escreve-se na pedra.
...
Calo-me, espero, decifro.
As coisas talvez melhorem
São tão fortes as coisas!
Carlos Drummond de Andrade.
1. Introdução.
O tempo de partido de Drummond faz-se, ainda, tempo presente, no qual os
homens estão divididos entre a crise que os consome e as esperanças que emergem.
“Nosso tempo” permanece atual, vivificado nos reclames por carne, fogo e sapatos,
enquanto os direitos humanos – aí inserto o Direito do Trabalho, na geração dos direitos
sociais e econômicos e culturais –, suas definições, suas declarações e normatizações não
bastam.
Depara-se, atônita e paradoxalmente, com “as coisas” – o sistema social, o
Estado, a ciência, a técnica, na constante expectativa da melhoria. No entanto, as (outras)
“coisas” – o Capitalismo, os interesses, a luta pelo poder e por sua manutenção, são tão
fortes, que não permitem sua transformação, fazendo o homem novamente partido.
A sociedade contemporânea é também partida, caracterizada por um contexto
intrinsecamente crítico. A etimologia do termo crise indica sua definição como conflito,
tensão ou modificação brusca e intensa. Indaga-se, então, qual é o momento conflituoso
vivido atualmente? Qual tensão que acomete a sociedade? Que modificação brusca se
encontra?
As respostas são tão difíceis quanto as questões suscitadas, mas justamente
por esta razão carecem de resoluções ou, ao menos, de tentativas de respostas. Pode-se,
em linhas gerais, identificar o contexto crítico principalmente no caráter paradoxal da
vida humana e suas possibilidades: ao mesmo tempo em que o homem desenvolve
inúmeros instrumentos (ciência, direito e trabalho) que propiciam, além da sua autonomia
perante a natureza, incontáveis possibilidades de uma vida digna, enfrentam-se, por outro
lado, problemas persistentes que assolam todos os segmentos sociais, gerando medo,
insegurança, guerras e incertezas.
O momento conflituoso está umbilicalmente associado à crise do Estado e
das formas de se organizar a sociedade. Apesar da derrocada das experiências comunistas
no leste europeu, o capitalismo sobrevivente não tem conseguido oferecer soluções e
modelos de Estado que assegurem uma vida digna. Pelo contrário, tem-se visto a
retomada de guerras e invasões de caráter mundial, especialmente aquelas produzidas
pelas políticas autoritárias e unilaterais dos Estados Unidos. À medida que a concepção
hegemônica de Estado impõe um Estado Mínimo - não intervencionista – as garantias
individuais e os direitos sociais são cada vez menos assegurados. Privilegia-se a liberdade
em detrimento da igualdade.
A tensão decorrente da incapacidade do Direito moderno em regular
eficaz e agilmente as relações sociais (Crise do Direito) é outro componente importante
da crise. A efetividade das normas jurídicas, principalmente das normas constitucionais –
justamente as mais importantes, tem encontrado cada vez mais obstáculos, os quais são
produtos da cultura jurídica predominante, calcada no modelo jurídico individualista,
formalista e patrimonialista, que não mais se adequa a atual sociedade plural, desigual e
diferente. O acesso ao Judiciário tende a se restringir, em face da tensão entre o Direito e
a realidade, ensejando o surgimento de juridicidades não-estatais e práticas pluralistas.
Ademais, uma considerável parte da legislação existente é incompatível com a situação
fática contemporânea, não possuindo, portanto, eficácia, enquanto inúmeras situações
cotidianas, sem regulação, que resultam em conflitos; não, portanto, tem como ser
solucionadas à luz das normas positivas.
A sociedade vive uma mudança brusca, decorrente dos avanços
tecnológicos, que com a microeletrônica, robótica e tele-informática, que têm
redimensionado as formas de viver globalmente. Tais adventos tecnológicos construíram
um mundo altamente interligado com múltiplas possibilidades comunicativas,
provocando aumento intenso das relações internacionais, como as trocas comerciais,
culturais, entre outras. Imaginar que se esteja interligado instantaneamente a qualquer
lugar deste planeta é indubitavelmente uma mudança brusca. O mundo do trabalho é
inteiramente reorganizado, criando-se novas formas de execução e até mesmo se tem
cogitado o seu fim, provocando uma Crise no Trabalho.
O conflito, a tensão e as mudanças bruscas conformam a crise, que são as
circunstâncias que ocasionam a crise do Direito do Trabalho, especificamente. Destarte,
pretendemos com este trabalho apresentar, em termos gerais, as concausas da Crise do
Direito do Trabalho, seus reflexos e as perspectivas.
2. A crise do Direito do Trabalho.
Para compreender a crise do Direito do Trabalho em sua integralidade, tornase
imprescindível considerar a conjuntura econômica e social que engloba esta disciplina.
Nesse sentido, a série de crises da sociedade contemporânea enseja desdobramentos nas
instituições basilares, como o Estado, a Ciência e o Direito. Conseqüentemente, a crise
Direito do Trabalho estará concatenada com a crise que assola a sociedade, posto que
sendo o Direito uma Ciência Social Aplicada, refletirá as conseqüências das crises do
Estado, da Ciência e do Trabalho. Registre-se que, tratando-se o presente trabalho de uma
síntese da monografia, optamos por resumir os tópicos sobre Crise do Estado, Crise da
Ciência e do Direito, primando pelo aprofundamento sobre a Crise do Trabalho.
A globalização, norteada pelo neoliberalismo, ao promover as integrações das
economias mundiais, também impõe uma redução na atuação estatal. Em verdade,
estabelece como diretriz um Estado-Mínimo em contraposição ao Estado-Providência. A
autonomia privada ressurge com força, criticando a intervenção estatal, que segundo este
pensamento, tem propiciado obstáculos para o crescimento econômico. Este contraste
entre um Estado, ainda interventor, que sofre reduções, limitações e privatizações
provoca uma crise particular do Estado.
Em concomitância, os estudos científicos mais profundos têm demonstrado a
própria crise da ciência, especialmente porque tem apontado seus limites. A
epistemologia2 pós-moderna descontroí os mitos científicos da modernidade, quais sejam:
o cientificismo e a neutralidade. Vislumbra-se, portanto, uma crise nos paradigmas
2 Epistemologia compreendida como teoria do conhecimento, disciplina filosófica, que pretende investigar
a possibilidade, a produção, organização e validade do conhecimento cientifico.
científicos, que caminham na direção de relativizações, na compreensão de que todo
conhecimento é provisório, inconcluso e inacabado, ou seja, de que não existem verdades
absolutas e tampouco a ciência, ou melhor, a racionalidade científica não possui o
monopólio na produção de verdades. Tem-se a crise na Ciência, que também repercute no
Direito3.
Na seara jurídica, as discussões sobre a crise do Direito são aventadas em
consideração às criticas ao positivismo jurídico e do paradigma moderno do Direito4.
Todas estas séries de questões conduzem a crise do Direito que, além de tributária da
crise da ciência, advém da crise de efetividade das normas jurídicas, resultante tanto da
dificuldade de acesso à Justiça, como decorrentes da cultura jurídica moderna
individualista, positivista e formalista, inclusive gerando um distanciamento e declínio
das tradicionais formas legais de composição dos conflitos, em face de uma sociedade
cada vez mais complexa e diferenciada.
Todas essas circunstâncias provocam reflexos importantes no Juslaboralismo,
pois implicam redução da atuação legiferante do Estado, na redução de custos – redução
de direitos e fragmentação da classe trabalhadora. De fato, o Direito do Trabalho termina
sendo o direito de poucos trabalhadores. A partir de uma visão liberal, Arion Romita
ilustra a crise do Direito do Trabalho como:
3 A crise da Ciência, mais precisamente a transição entre racionalidade moderna e a pós-moderna, promove
profícuos questionamentos aos limites e o próprio papel da Ciência. O Direito, considerado como Ciência
Social, sofre, por derivação, conseqüências gravosas, particularmente a crítica severa ao positivismo
jurídico e a cultura jurídica moderna, conforme se verá no tópico seguinte.
4 Sustenta Antônio Carlos Wolkmer que um dos fundamentos da crise do Direito é a crie da legalidade
estatal, isto é, do monismo jurídico. É que justamente esta concepção de Direito não consegue mais regular
ou oferecer parâmetros de resolução dos conflitos nesta nova realidade atual. Estas instabilidades ou crises
sociais provocam também crises no Direito ou, nos termos de Antônio Carlos Wolkmer (1997; p. 62), “o
esgotamento do modelo jurídico tradicional”. É preciso perceber que o Estado, notadamente o seu modelo
atual centralizador e burocrático, não consegue mais produzir normatividades capazes de corresponder à
nova organização social.
Inadequação dos instrumentos legislativos vigentes, imprestáveis antes
às novas exigências de uma quadra econômica particularmente difícil,
marcada pela recessão, pela ameaça constante do fechamento de
empresas e conseqüente desemprego e pelo aviltamento do nível real
dos salários, única fonte de subsistência do trabalhador e sua família.
(ROMITA; 2000, p. 188).
Constata-se que as crises do Direito do Trabalho sempre estiveram
correlacionadas com os momentos de crise econômica. Nesse sentido, Arion Romita
(2000, p. 189) historiciza que Hugo Sinzheimer publicou artigo intitulado “A crise do
Direito do Trabalho” já em 1933. Relata, também, que Polomeque Lopez caracterizou a
crise econômica como “companheiro de viagem histórico do Direito do Trabalho”.
Destarte, o objetivo principal deste trabalho é caracterizar a crise do Direito
do Trabalho como resultante dos reflexos de três crises que acometem a sociedade: a
crise do Estado; a crise da Ciência e do Direito; a Crise do Trabalho. Identificadas,
ainda que rapidamente, as causas que circunscrevem a crise no Direito Laboral (Crise do
Estado, Crise da Ciência e do Direito), pode-se, então, aprofundar a analise sobre a Crise
do Trabalho, bem como os reflexos da crise, e entender as perspectivas que são
apresentadas.
3. Crise do Trabalho.
A conceituação do trabalho é algo bastante controverso, em face das
dimensões que o trabalho pode assumir. Podemos corroborar Engels (1984): é o trabalho
o elemento que distingue o homem da natureza, pois em razão de seu labor consegue a
sua libertação e autodeterminação perante o meio que o circunda5. Domenico de Masi
sustenta que “o progresso humano nada mais é do que um longo percurso do homem
rumo à intencional libertação, primeiro da fadiga física e depois da fadiga intelectual”
(1999, p.7), baseado na organização do trabalho humano. Domenico de Masi resume este
processo de libertação:
Daí resulta uma sucessão de fases liberatórias: a que vai desde as
origens até a Idade Média trouxe a progressiva libertação da
escravatura; a que vai da Idade Média até a primeira metade do século
XX trouxe a progressiva libertação da fadiga; a que teve início a
partir da Segunda Guerra Mundial e na qual vivemos hoje visa à
libertação do trabalho. (1999, p. 8) (grifo nosso)
Em salto histórico imenso, observa-se que o fordismo/taylorismo teve seu
desenvolvimento associado à expansão capitalista mundial, com grande ascensão durante
o Estado do Bem Estar Social. No entanto, com as crises de 1960/70, o Capitalismo
ingressa em mais uma metamorfose, sob viés do programa neoliberal de redução do
Estado e da atividade produtiva. Transfere o seu eixo da produção industrial para o
segmento de serviços, como também prefere obter lucros na especulação financeira,
principalmente nos serviços das dívidas de países. Neste contexto de reorganização do
Capitalismo, o mundo do trabalho também foi significativamente transformado.
A década de oitenta/noventa do século passado representou a ruptura com o
fordismo/taylorismo. A automação, robótica e microeletrônica inseriram-se
profundamente no meio produtivo, acarretando grandes mudanças nas relações de
5 Noutro sentido, o trabalho pode expressar a dignificação do homem, que mediante seu esforço, obtém
resultados (bens ou serviços) que lhe possibilitam prover sua sobrevivência, combinada com a realização de
atividade/função na qual explore e potencialize suas qualidades e habilidades, inclusive com a realização da
felicidade ao transformar o trabalho em sobrevivência e também em forma de auto-identificação e
afirmação. A idéia de dignificação do homem pelo trabalho é desenvolvida por Karl Marx, como também,
utilizada ainda na Bíblia (Todo homem que come, bebe e tira o fruto do seu trabalho, recebe isto por um
dom de Deus, Ecl 3, 13 ). Embora, tais definições estejam situadas em contextos e ideologias diferentes,
expressam uma valorização do trabalho humano.
trabalho e no próprio sistema produtivo, inclusive considerando-se como a Terceira
Revolução Industrial. Novos processos de trabalho emergem, situados em um novo
paradigma. O padrão generalizante de produção, que caracterizou o fordismo, vem sendo
substituído por formas produtivas mais flexíveis, individualizadas e desregulamentadas.
Sugere Ricardo Antunes que o toyotismo “pode ser entendido como uma
forma de organização do trabalho que nasce a partir da fábrica Toyota, no Japão, e que
vem se expandindo pelo Ocidente capitalista, tanto nos países avançados quanto naqueles
que se encontram subordinados” (2000, p. 181). Em sua essência, o toyotismo ampara-se
no contexto da complexidade-diferenciação pós-moderna, para constituir-se um novo
paradigma no processo produtivo.
É caracterizado por ter sua produção vinculada à demanda, desenvolvimento
de produtos diferenciados, adequados aos interesses e necessidades do adquirente,
resultado de ação em equipe de técnicos com multifunções e especialidades.
Complementa Ricardo Antunes:
Temo como princípio o just in time, o melhor aproveitamento possível
do tempo de produção e funciona segundo o sistema kanban, placas ou
senhas de comando para reposição de peças e de estoque que, no
toyotismo, devem ser mínimos. Enquanto na fábrica fordista cerca de
75% era produzido no seu interior, na fábrica toyotista somente cerca
de 25% é produzido no seu interior. Ela horizontaliza o processo
produtivo e transfere a terceiros grande parte do que anteriormente era
produzido dentro dela (ANTUNES, 2000, p. 181/182)
De outro lado, não há mais parcelamento do trabalho como na linha de
montagem fordista, mas trabalho realizado em equipes aptas, com flexibilidade na
organização do trabalho e maquinário multifuncional, para produzir produtos
diferenciados e individualizados. Ocorre, então, uma mudança no perfil do trabalhador.
Anteriormente necessitava-se de trabalhadores sem especialização ou conhecimentos
especiais para realização de tarefas simples e repetitivas. Com o modelo da Toyota, o
trabalhador assume um perfil polivalente, isto é, para atender as demandas
individualizadas do mercado, o trabalhador deve possuir relativa especialização ou
conhecimento técnico e ter a capacidade de realizar atividades distintas e com máquinas
diferenciadas. O modelo da Toyota engendra uma nova organização do processo
produtivo, marcada pela qualidade total6 do produto produzido. No fordismo, o processo
produtivo é vertical e concentrado na mesma empresa, no toyotismo é horizontalizado e
difuso. Assim, o toyotismo perfaz uma reegenheria produtiva com incremento da
terceirização e de precarização de condições trabalho, além do trabalho temporário.
Os avanços tecnológicos, além da colaboração com o modelo toyotista, têm,
cada vez mais, em escala geométrica, transformado-se na própria força produtiva. Isto é,
os avanços tecnológicos têm dispensado a atividade humana. Verifica-se, então, o
fenômeno do desemprego estrutural, que extirpa postos de trabalho e funções em favor da
automação da atividade laboral ou, mesmo, da própria desnecessidade da função, em face
de novas técnicas produtivas.
Há um novo parâmetro na produção industrial, a revolução tecnológica
confere à ciência e à tecnologia o papel de força produtiva. Mais precisamente, a
tecnociência tornou-se agente da própria acumulação do capital, implicando em enorme
acréscimo da produtividade do trabalho humano. Esta revolução consiste, em essência, na
difusão e utilização de mecanismos/processos controlados pela informática, com
capacidade de programar todo o processo de automação. A centralidade deste processo
6 Frise-se que a noção de qualidade total não se refere à qualidade do resultado, mas sim do próprio
processo produtivo, ou seja, almeja o aumento da produtividade. Acrescenta, também, uma diminuição do
âmbito produtivo da empresa, com delegação de funções a terceiros, como a produção de componente ou
serviço integrante do processo produtivo.
está na substituição da eletromecânica pela eletrônica como base do processo de
automação, ou seja, o processo produtivo tem, então, como eixo a tecnologia de
informação.
Todo o processo organizativo da produção, como visto, está em constante
aperfeiçoamento, obtendo ganhos de produtividade em escala ascendente, por
conseguinte, gerando mais riqueza. Particularmente, o toyotismo representa o sistema
organizativo mais produtivo já visto e mais compatível com o contexto pós-moderno da
complexidade, isto segundo os detentores dos meios de produção. Infelizmente, toda a
melhoria nesses processos, especialmente o aumento de produtividade e riqueza, não tem,
em contra-partida, assegurando aos trabalhadores melhores condições de trabalho ou
mesmo salariais. Aliás, toda evolução da organização da produção que tem obtido
aumento de produtividade não tem traduzido para o trabalhador sua contrapartida, isto é,
melhoria nas condições de trabalho e vida.
4. Reflexos da Crise.
Entende-se como reflexo a reação a uma estimulação. As reações à crise do
Direito do Trabalho podem ser sintetizadas no discurso da redução de custos, nas práticas
flexibilizantes, na precarização do trabalho, na terceirização e na heterogeneização do
trabalho.
O principal argumento utilizado para propor alterações no Direito do Trabalho
é a redução de custos, que é considerada como imprescindível perante a concorrência
global. Este discurso tem encontrado intenso respaldo nos países em desenvolvimento,
nos quais, contrariamente, os trabalhadores ainda estão sujeitos a intensa exploração e
baixa remuneração. No Brasil, é notória a alegação de que os encargos sociais impedem
novas contratações, que o trabalho é extremamente oneroso, que a legislação brasileira é
excessivamente benéfica. Porém, não se chega a esta conclusão quando se compara os
custo do trabalhador brasileiro com de outros países.
Ainda que considerado o custo paralelo do direito do trabalho, o custo
de mão-de-obra, no Brasil, mesmo integrado de todos os encargos
sociais, é baixíssimo, se comparado a outros países. Segundo
informações de Arnaldo Sussekind o custo da mão-de-obra no Brasil é
igual a R$ 2,79, enquanto que esse mesmo custo no Japão é R$ 12,84;
nos EUA de R$ 14,83; e, na Alemanha, R$ 21,50. Relevante destacar,
também, que o valor do salário mínimo no Brasil equivale a US$ 75,00,
enquanto que em outros países o valor é bastante superior: Itália, US$
500,00; Espanha US$ 600,00; EUA, US$ 680,00; Canadá US$ 920,00;
França US$ 1.000,00; Holanda, US$ 1.075,00; Dinamarca, US$
1.325,00. (SUSSEKIND; 2002, p. 59)
O discurso de redução de custos ataca a legislação trabalhista, culpando-a pela
inibição na contratação de novos trabalhadores, em razão do alto custo do salário e dos
encargos, sendo preferível menos proteção e mais empregos, ou seja, pugna pelo mal
menor7. Sobre o alto custo do trabalho, constata-se que tal argumento não encontra
amparo nos países em desenvolvimento. Quanto aos “encargos” urge explicitar o
componente ideológico (neoliberalismo) contido na denominação do termo, que expressa
fardo, peso e excesso. Porém, é inadmissível tachar o repouso semanal remunerado, as
7 Convém, ainda, contestar o principal argumento utilizado pelos que defendem a redução de direitos em
troca da garantia de empregos: o mal menor. Ou seja, é preferível a redução de salários ou, mesmo piora
nas condições de trabalho em troca da garantia de emprego, ainda que esta garantia seja temporária. Se essa
argumentação prevalecesse, logo era também preferível submeter as populações excluídas à condição de
escravos, ou, em tempos de pós-guerra, ao invés de assassinar os vencidos, como acontecia
costumeiramente na história humana, reduzi-los a escravos, pois se estaria, sem dúvidas, fazendo o mal
menor. Tais idéias são tão absurdas contemporaneamente quanto deveria ser a pretensão de aviltar o
trabalhador em nome da garantia do emprego.
férias e o décimo terceiro salário como fardo ou excesso, pois são direitos
constitucionais, que conseqüentemente impõem obrigações aos empregadores,
conquistados historicamente nas lutas dos trabalhadores. Da mesma forma, não se pode
afirmar que as prerrogativas do consumidor, asseguradas na legislação, são encargos aos
empresários.
A segunda estratégia consiste na flexibilização. Flexibilizar é o ato de vergarse
ou curvar-se perante algo ou alguém. No entanto, os defensores da flexibilização
contextualizam seu sentido como apenas flexibilidade ou adaptação da norma, face à
situação econômica mundial em crise e intensa concorrência. Então, a flexibilização
preconiza a redução de vantagens e direitos, permitindo que o empregador, diminuindo
custos, obtenha sucesso no cenário competitivo. Em face dos inúmeros acúmulos sobre a
flexibilização não vamos neste trabalho, aprofundar tal tema, limitando-se a exemplificar
tal prática a partir da Lei 9601/98 que institui o contrato por prazo determinado.
Outro fenômeno que tem ascendido no contexto da crise do Direito do
Trabalho é denominado comumente de desregulamentação, embora se adote, neste
trabalho, por ser mais adequado, cunhá-lo como precarização (FREITAS, 2001). A
precarização é, de fato, a eliminação do Direito do Trabalho, uma vez que “torna o
contrato e as condições de trabalho mais frágeis ... tornam as empresas mais livres para
contratar e dispensar empregados ... retiram do Estado atribuições relacionadas a proteção
trabalhista e/ou previdenciária” (FREITAS; 2001, p. 6).
Desta forma, pode ser considerada uma postura mais extremada do que a
flexibilização porque pretende a retirada de regulamentação, delegando para a autonomia
privada o estabelecimento das condições de trabalho e sua retribuição. É a anomia no
dizer de Romita (2000), ou seja, inexistência de regulação legal de caráter protetivo para
o trabalho, que, assim sendo, deverá individual ou coletivamente ajustar com o
empregador os termos do contrato de trabalho. A título de diferenciação, a flexibilização
reside na seara interna do contrato, realizando redução/adaptação dentro dos termos
estabelecidos no contrato de emprego, enquanto que a precarização age na seara externa
do contrato, uma vez que não assegura qualquer direito ou vantagem estabelecida no
contrato, por isso é chamado de contrato precário.
Destarte, a flexibilização e precarização têm sido as principais estratégias
utilizadas pelos pensamentos que defendem a redução de custos, em nome da garantia do
emprego, no entanto, tem significado a redução ou mesmo eliminação de direitos sociais
conquistados pelos trabalhadores. Em consórcio com estas estratégias, tem-se na seara da
organização produtiva empregado dois fenômenos: a terceirização e a heterogeneização
das formas de trabalho.
A Terceirização, originada no toyotismo, fundamenta-se em argumentos de
ordem técnica que sustentam uma maior e melhor produtividade, através desta forma
organizativa da produção. A terceirização caracteriza-se pela presença de um
intermediário entre o trabalhador e a empresa que usufrui dos serviços deste. Trata-se da
sublocação, isto é, na terceirização a força de trabalho não é locada diretamente a
empresa que recebe o resultado do trabalho, mas inicialmente locada a um terceiro, que
subloca a uma outra empresa, que corresponde a tomadora dos serviços.
Constata-se, portanto, uma dissociação da figura do empregador, posto que
existe um que admite e assalaria e outro que dirige os serviços. É este o conceito de
Maurício Godinho Delgado:
Para o Direito do Trabalho terceirização é fenômeno pelo qual se
dissocia a relação econômica de trabalho da relação justrabalhista que
lhe seria correspondente. Por tal fenômeno insere-se o trabalhador no
processo produtivo do tomador de serviços sem que se estendam a esse
os laços trabalhistas, que se preservam fixados com uma entidade
interveniente. A terceirização provoca uma relação de trabalho trilateral
em face da contratação de força de trabalho no mercado capitalista: o
obreiro, prestador de serviços, que realiza as atividades materiais e
intelectuais junto à empresa tomadora de serviços; a empresa
terceirizante, que contrata este obreiro, firmando com ele os vínculos
jurídicos trabalhistas pertinentes; a empresa tomadora do serviço, que
recebe a prestação do labor, mas não assume a posição clássica de
empregadora desse trabalhador envolvido. (DELGADO; 2004, p. 424)
Márcio Túlio Viana relata que, em função da competitividade decorrente da
globalização, a terceirização se torna uma necessidade imposta por esse sistema,
apontando como caminho para a redução de custos ao expulsar da empresa o controle de
etapas do processo produtivo. Márcio Túlio Viana afirma que no Direito comparado:
Entre os economistas, essa prática também é conhecida como
outsourcing ou putting-out. No Direito Comparado em geral, se usa o
termo subcontratação. A empresa joga para suas parceiras algumas das
– mesmo todas as – as etapas de seu ciclo produtivo, enxugando-se.
(VIANA; 2002, p. 776)
É preciso desvelar que a terceirização compreende uma estratégia
externalizante. Com efeito, repassa para uma terceira a responsabilidade por uma etapa
do processo produtivo, e, por conseqüência, a responsabilidade pelas obrigações
trabalhistas e previdenciárias. Registre-se que também possibilita um regime de
diferenciação entre os empregados diretos e os terceirizados, confirmada pela distinta
representação sindical e inclusive com parâmetros salariais incompatíveis. Propicia,
então, o surgimento de pequenas empresas ao redor da tomadora, sem idoneidade,
incorrendo, geralmente, no inadimplemento dos créditos trabalhistas. “Mas existe outro
detalhe importante. Na verdade, como vimos, o que a empresa faz é um duplo
movimento. Ela expulsa o trabalhador protegido e o retorna sem proteção, seja por meio
de terceirizações internas, como por meio das externas” (VIANA; 2002, p. 785)
Entretanto, todos os esses argumentos omitem a real fórmula de redução de
custo. É bastante paradoxal que um serviço específico e realizado por uma empresa
especializada seja oferecido por preços menores do que se fosse realizado por
trabalhadores não-especializados, pois o trabalho especializado é, normalmente, mais
caro do que o simples. A redução de custos é explicada pela redução da contraprestação
salarial, uma vez que a empresa terceirizada emprega trabalhadores dispersos, distintos e
isolados, utilizando-se práticas de sonegação de direitos trabalhistas e previdenciários, e,
principalmente pelo pagamento de salários inferiores aos praticados na empresa que
terceiriza. Márcio Túlio Viana relata a seguinte pesquisa:
O estudo do DIEESE, em 1999, envolvendo 40 empresas terceirizadas
do ABC, apontavam: em 72,5% dos casos, benefícios sociais
inferiores; e em 67,5% níveis salariais mais baixos. As jornadas eram
mais extensas e as condições de saúde e segurança mais precárias.
(2002; p. 781)
Além destes problemas, a terceirização representa o enfraquecimento da
categoria e dos sindicatos de trabalhadores, pois dificulta a organização associativa. No
sistema jurídico brasileiro, o enquadramento sindical é definido pela atividade econômica
predominante da empresa, que implica dizer que os trabalhadores terceirizados não têm
direitos às vantagens coletivas praticadas nas empresas tomadoras dos serviços, pois seu
vínculo não é com esta empresa que terceiriza o serviço, no qual ele trabalha, mas sim
com uma terceira, que comumente tem como atividade econômica a prestação de serviços
ou locação de mão de obra.
Percebe-se, então, que há imediatamente uma exclusão das vantagens
normativas, não obstante o trabalhador terceirizado exercer uma função que, se não
houvesse o vínculo interposto com uma terceira, lhe garantiria as mencionadas vantagens.
Há, também, uma dispersão da categoria de prestadores de serviços que dificulta a
formação ou o fortalecimento de um sindicato que possa representar e pleitear melhoria
nas condições de trabalho. Portanto, o modelo terceirizante e toyotista é nitidamente antisindical
e prejudicial ao trabalhador, criado com o intuito de reduzir salários e
enfraquecer os sindicatos. Nesse sentido, “a quebra do movimento operário se explica
pela terceirização. Foi ela a arma secreta que o capitalismo (re)descobriu ou (re)inventou.
Ela permite resolver a contradição entre a necessidade do trabalho coletivo e a
possibilidade de resistência coletiva” (VIANA; 2002, p. 789).
Por fim, verifica-se que, como último reflexo da crise do Direito do Trabalho,
o mundo do trabalho é atualmente caracterizado pela heterogeneização das formas de
trabalho, particularmente com o decréscimo do trabalho classicamente assalariado, o
emprego. Frise-se que a redução do emprego em favor de relações supostamente
autônomas ou precarizadas, importa em exclusão de um imenso contingente de
trabalhadores do sistema protetivo trabalhista, social e previdenciário. Esse novo mundo
do trabalho criou, conseqüentemente, uma classe trabalhadora, assim definida por
Antunes:
Essas mutações criaram, portanto, uma classe trabalhadora mais
heterogênea, mais fragmentada e mais complexificada, dividida em
trabalhadores qualificados e desqualificados do mercado formal e
informal, jovens e velhos, homens e mulheres, estáveis e precários,
imigrantes e nacionais, brancos e negros, etc., sem falar nas divisões
que decorrem da inserção diferenciada dos países e de seus
trabalhadores na nova divisão internacional do trabalho. (2000, p. 184)
Assim, a heterogeneização implica a conformação de um mundo do trabalho
plural, diferenciado, multifacetado e difuso. Vejamos a referida pluralidade nas
possibilidades de trabalho no mundo contemporâneo:
Encontramos entre essas formas o trabalho temporário, o estágio, o
trabalho em tempo parcial, autônomos, falsos autônomos, cooperados,
trabalhadores organizados em forma empresarial, eventuais, avulsos,
free-lancers, domésticos, diaristas, horistas, empreiteiros,
subempreiteiros, trabalhadores com emprego partilhado (job sharing),
trabalhadores a distancia, contrato de solidariedade externo ou
expansivo, trabalhadores engajados em contratos civis, etc. (CARELLI;
2004, p. 17)
Com acerto, registra Rodrigo Carelli dois importantes problemas
caracterizadores destas formas multifacetadas e heterogêneas de trabalho:
Corresponde à lógica de erosão das características típicas do espaço
tradicional da empresa, ocorrem dois problemas: a opacidade do
empregador real e falta de tipicidade, ou seja, desconexão entre o
conceito de trabalho subordinado, levando ambos os problemas à
inefetividade das normas trabalhistas infraconstitucionais, e mesmo dos
direitos sociais constitucionalmente garantidos. (CARELLI; 2004, p.
17)
Os dados sobre o mundo do trabalho sustentam a heterogeneidade de suas
formas no Brasil, com a tendência à diminuição da contratação de trabalho através de
vínculo empregatício. O aumento do trabalho sem proteção legal “indica uma estratégia
de sobrevivência em face da perda da ocupação formal”(CUT: 2003). Esta
heterogeneidade, comumente chamada de trabalho informal, comporta uma
complexidade de formas de trabalho.
Pode-se, portanto, analogicamente dividir o mundo do trabalho em dois
grupos de trabalhadores: os incluídos, com perfil de profissional especializado e/ou
detentor de técnica, contratado nos termos da legislação trabalhista e previdenciária,
embora representem um pequeno contingente no total dos trabalhadores; os excluídos, os
demais não englobados no tipo anterior e que não se configuram como autônomos, por
não ter perfil especializado, sendo submetidos a contratações precárias ou mesmo a uma
relação civil de prestação de serviços, na qual prevalece a hiper-exploração, em razão de
que cabe aos trabalhadores todo o risco e custo da atividade, não obstante seja da empresa
contratante a possibilidade de fixação da retribuição. O modelo toyotista pretende, então,
“em vez de incluir, excluir – empregados, direitos, políticas sociais, etapas do processo
produtivo.” (VIANA; 2002, p. 779).
5. Repensando o Direito do Trabalho.
Como visto, o contexto crítico que perfaz a crise do Estado – decorrente da
globalização e do neoliberalismo, a crise da ciência – advinda das críticas pós-modernas
ao cientificismo e o positivismo, a crise do Direito – inserta na crise da ciência, mas
acrescida das críticas ao formalismo, patrimonialismo e individualismo, e a crise das
formas tradicionais de trabalho, notadamente o emprego, engendram a crise do Direito do
Trabalho, uma vez que atingem seus pilares principais, quais sejam, o Estado, o Direito e
o Trabalho. Márcio Túlio Viana assinala:
Para um regime instável de hoje, um direito precário, fragmentado,
quebradiço. Um direito que poderia até ser chamado de pós-moderno,
posto que pragmático, caótico, oscilante. Mas que nem por isso deixa de
ter uma diretriz: quer se estabilizar na instabilidade, quer flexibilizar
para endurecer [as formas de exploração do trabalhador]. Afinal, a
empresa exige redução de custos, e um de seus custos é próprio direito
(VIANA; 2004, p 169)
Constata-se, no plano jurídico, que os efeitos da crise do Direito do Trabalho
são confirmados pela adoção da flexibilização, precarização e sub-contratação (ou
terceirização), ressaltando-se a heterogeneidade das formas de trabalho. A título de
perspectivas, têm-se identificado tendências ou alternativas para o direito laboral. A
grosso modo, pode-se agrupá-las em duas direções: liberalizantes e protecionistas.
Este primeiro grupo sugere que as relações de trabalho devem ter uma maior
liberalização na tutela do empregado, afrouxando ou diminuindo a proteção ou mesmo as
vantagens estabelecidas na lei ou nas estipulações coletivas ou individuais no contrato de
trabalho. Pregam, conseqüentemente, a prevalência da autonomia privada em detrimento
da legislação trabalhista, sustentando que seria esta a única forma de garantir empregos
diante da competitividade global e das novas formas produtivas.
O sentimento que inspira esta liberalização pode ser representado na
afirmativa de Maurice Cohen (apud ROMITA; 2000, p. 185): “O
volume do Código de Trabalho engrossa continuamente, enquanto
diminui o número de trabalhadores aos quais ele se aplica”
Percebe-se que este pensamento conduz o Direito do Trabalho ao retorno ao
plano da igualdade de partes, que caracteriza o Direito Civil. A opção por este modo de
conceber o juslaboralismo, importa, de fato, na própria anulação da autonomia do Direito
do Trabalho, gerando sucessivamente sua destruição, eis que negaria a sua função
eminentemente protetiva do trabalhador, que é a característica essencial.
Portanto, a liberalização, que inspira a flexibilização, a precarização e a
terceirização, se levada a cabo integralmente, provocará o fim do Direito do Trabalho,
porque ao aplicar ao empregado e ao empregador a igualdade civilista, além do
retrocesso, estaria ignorando – como almejam seus defensores, a função de proteção dos
trabalhadores ante a exploração existente no trabalho subordinado.
O pensamento protecionista é ainda hegemônico, mas encontra-se mitigado
por posturas moderadas, que têm aceitado a flexibilização, a precarização e a
terceirização, desde que observados certos limites. O fundamento deste protecionismo é
originado diretamente na exploração do trabalho na sociedade capitalista que impõe ao
trabalhador uma condição mais fraca e dependente. Além deste fundamento, há que se
destacar a dignidade humana é fundamento maior dos ordenamentos jurídicos
contemporâneo, que no Direito do Trabalho atrai a proteção ao trabalhador, segundo lição
de Mário De La Cueva8 (1965; p. 9).
Nesse sentido, não se pode considerar ou tratar igualmente o trabalhador,
ainda hipossuficiente, e por conseqüência fraco e dependente do trabalho para assegurar
sua sobrevivência, com o empregador que detém o poder de admitir e despedir numa
conjuntura de altos índices de desemprego e de exclusão social. Com razão Luiz Otávio
Renault ao dizer que
O Direito do Trabalho não se convence do argumento corriqueiro
atualmente rechaçado em acanhada proporção até pelo novo Código
Civil, que entrou em vigor no dia 11.1.2003, de que todo homem é livre
e igual, capaz em direitos e obrigações, por isso apto a celebrar e a
cumprir o contrato que desejar com as cláusulas que bem entender, sem
dirigismo estatal, sem preocupação com a difusa destinação social do
contrato. (RENAULT; 2004, p. 66)
A reestruturação produtiva, as novas tecnologias e a diminuição da
intervenção estatal não têm provocado melhoria nas condições de trabalho e remuneração
na atualidade, o que mantém a condição de hipossuficiência dos trabalhadores,
reafirmando a necessidade de proteção. Depara-se, ao revés, não com trabalhadores
dependentes, em larga escala, proveniente da grande fábrica no Estado do Bem Estar
Social, mas encontra-se precisamente uma fragilidade difusa, heterogênea e complexa,
8 A finalidade imediata do Direito do Trabalho é elevar os níveis de vida dos homens para que
possam desfrutar do espetáculo da natureza e dos bens produzidos pelo trabalho material e
intelectual de nossos antepassados e pela ação criadora daqueles que convivem conosco.
(CUEVA; 1965, p. 9)
dificultando a organização coletiva destes trabalhadores e sua capacidade de
reivindicação, que tem que conviver com o aterrorizante desemprego.
Urge confirmar a dignidade humana. Na análise de documentos normativos
(Carta Internacional dos Direitos Humanos e Constituição Federal) pode-se identificar
uma filosofia subjacente aos direitos humanos, centrada na dignidade essencial do
homem, que impede toda forma de instrumentalização do ser humano (coisificação)9.
Sendo assim, as modificações nos processos produtivos advindos dos avanços
tecnológicos, a reestruturação produtiva e a redução de custos têm que observar estes
preceitos, devendo, ainda, ser compromissárias da reinvenção da concepção de trabalho,
como expressão de dignidade humana. Assinala Alceu Lima:
Qual a razão última de ser do trabalho e das normas que devem regêlo?
A felicidade humana. O homem, não trabalha para se agitar, para
aplicar o excesso do seu dinamismo, para produzir riquezas ou para
obedecer a uma injunção divina. O trabalho não é uma agitação vã,
nem uma válvula de segurança, nem um dinamismo econômico, nem
uma penalidade pelo pecado. O trabalho é o caminho para a felicidade.
O homem trabalha para ser feliz. O trabalho é o meio que lhe permite,
moralmente, realizar ou não, condições essenciais de sua felicidade,
vencendo ou não os obstáculos que por natureza se lhe opõem. (LIMA,
Alceu apud RODRIGUES PINTO, 2000, p. 1490)
Em consonância com a uma postura protecionista, sustenta-se que o Direito do
Trabalho urge em ser repensado, com o objetivo de conferir maior efetividade na
proteção aos empregados e ampliar-se para ofertar proteção aos trabalhadores
heterogêneos e diferenciados, mesmo que, para estes últimos, se instala uma tutela menor
do que para os empregados. Considerando que a ontologia do juslaboralismo se adstringe
ao protecionismo, os princípios do Direito do Trabalho devem assumir dimensão mais
9 Partindo de um personalismo ético que reconhece em cada homem, um fim, um sujeito, um valor, uma
dignidade inalienável, a dignidade humana é conceituada como algo inalienável e com responsabilidade
insubstituível
ampla e compatível com uma sociedade em transição para o pós-fordismo e para a pósmodernidade.
Em defesa dos princípios, assinala Luiz Otávio Renault:
Mesmo que se admita que alguns institutos do Direito do Trabalho
estejam ultrapassados, seus princípios permanecem sólidos e aptos a
proporcionar as mudanças exigidas pelo novo modelo econômico,
desde que se insira o homem no centro da vida sócio-econômicocultural.
(RENAULT; 2004, p 85)
Repensar o Direito do Trabalho implica compreender que as inovações
tecnológicas e a reestruturação produtiva forjaram uma crise no conceito clássico de
subordinação. Diga-se, de passagem, que a fuga à subordinação tradicional é
notadamente um movimento intencional, pois procura fugir da tutela trabalhista da
relação empregatícia, visando a redução das despesas. “Forçado a autonomia, o
trabalhador não chega a ser autônomo de fato: mesmo em seu micro-negócio, carrega um
estigma de desempregado. Aliás, muitas vezes, continua a ser um verdadeiro empregado,
pois a relação de dependência não termina: apenas se desloca e se traveste” (VIANA;
2004, p. 185). Márcio Túlio Viana continua:
O conceito de subordinação, que era unívoco e se ampliava sempre,
alcançando um número crescente de pessoas, tende hoje a se partir em
dois: de um lado, os realmente dependentes, aos quais se aplicam as
velhas garantias; de outro, os parassubordinados, para os quais se
procuram soluções a meio caminho, como acontece com certo projeto
de lei. Com isso, de forma inteligente, difunde-se a idéia de que está
havendo mais proteção, quando, na verdade, quebra-se a marcha
expansiva do Direito do Trabalho: os trabalhadores fronteiriços, que
seriam tendencialmente considerados empregados, passam a constituir
uma nova (sub)categoria jurídica. (VIANA; 2004, p. 173)
Na mesma direção, Tarso Genro constata:
O Direito do Trabalho, pela sua gênese, de doutrina de resistência à
exploração desenfreada, criou formas jurídicas inclusivas dos
trabalhadores na moderna sociedade de classes e cumpriu uma longa
trajetória normativa, que modernizou a modernidade. Sua “carga
genética” esgotou-se, porem, porque seus sujeitos principais, os
trabalhadores da grande indústria, estão se tornando cada vez mais
impotentes para gerar uma nova ideologia de solidariedade, que se
oponha inclusive à sua própria fragmentação. (GENRO; 2002, p. 183)
Precisa-se, então, resgatar a essência do Direito Laboral advinda de sua
gênese. Na análise da origem do Direito Trabalho, pode-se encontrar seu sentido e sua
ontologia, que teve surgimento a partir das ações e reivindicações da coletividade dos
trabalhadores. No contexto em que a igualdade jurídica era basilar, o Direito do Trabalho
afirma a desigualdade como fundamento de sua existência, inferindo a necessidade da
proteção do hipossuficiente. No dizer de Arnaldo Sussekind (2003) “é o produto da
reação verificada no século XIX contra a exploração dos assalariados por empresários”.
A atual realidade repete os dilemas de surgimento do Direito do Trabalho: a excessiva
exploração do trabalhador através de formas distintas da relação de emprego, com o
agravame de relativizar o conceito de subordinação jurídica Precisa-se, então, resgatar a
essência do Direito Laboral advinda de sua gênese. Proveniente, diretamente, do mundo
fático, o Direito do Trabalho nasceu com eminência e particularidade na seara jurídica.
É mister, então, repensar o Direito do Trabalho para encontrar novos
parâmetros e fundamentos que justifiquem sua existência, uma vez que o discurso
liberalizante sugere, em contra-senso, a sua redução ou o seu fim.
Destarte, a superação da crise, numa vertente protecionista, deve ser executada
através da ampliação ou expansionismo do Direito do Trabalho. Orlando Gomes e Elson
Gottschalk já esboçavam uma projeção, quando se referem à noção de expansionismo no
Direito do Trabalho, ex vi:
O expansionismo do Direito do Trabalho manifesta-se em sua tendência
de alargamento de suas fronteiras, quanto às pessoas que devem reger.
Esta tendência contemporânea se explica essencialmente pelo fato de
ser o Direito do Trabalho uma legislação de proteção aos
economicamente débeis. (1989, p. 34)
Washington Trindade defende que “o Direito do Trabalho marcha para a
regeneração de seu conteúdo e dos modos de sua realização”(2000, p. 1505). Rodrigues
Pinto assevera o seguinte.
A globalização da economia colocou o Direito do Trabalho frente a
frente com um dilema: endurecer suas linhas de estrutura tutelar,
montada para responder às condições totalmente ultrapassadas da 1ª
Revolução Industrial, ou flexibilizá-la, procedendo a revisão do seu
conteúdo dos seus princípios, sem negá-los. (...) A resposta válida do
Direito do Trabalho ao estímulo dos fatos só pode ser a recriação de seu
conteúdo, aproveitando na medida máxima possível, o lastro original.
(RODRIGUES PINTO; 2000, p. 1493)
Assim também indica Wagner Giglio:
O Direito do Trabalho, até agora protetor dos empregados, passará a
beneficiar todos (ou quase todos) os que trabalham, com ou sem vínculo
empregatício. Tecnicamente o Direito do Trabalho tende a se aproximar
do Direito Civil. ... sofrerá uma radical alteração de seus propósitos e
objetivos, diversificando e multiplicando suas fontes, instrumentos e
propósitos para atender a necessidades novas, mas específicas e
individualizadas, passando de Direito do Trabalho para Direito dos
Trabalhadores, perdendo um tanto seu caráter protecionista e passando
pa hétero-autoregulamentação estatal para a auto-regulamentação
convencional. (GIGLIO; 2004, p. 1168).
Portanto, sustenta-se que a perspectiva futura do Direito Laboral deve-se
coadunar com sua ontologia originária: a proteção ao ser humano. Partindo desta
premissa de proteção ao homem, o Direito do Trabalho não pode silenciar acerca das
diversas formas de trabalho não-subordinado atuais que afetam assustadoramente a
dignidade do homem. Urge, assim, a releitura do Direito do Trabalho, para que este
assegure a proteção a estes trabalhadores. Nesse sentido, temos Amilton Bueno:
O principio da proteção àquele que trabalha é conquista da humanidade,
é etapa vencida no movimento histórico que não se admite mais
retrocesso. A consciência jurídica universal repudia a restrição de tal
conquista. Este, pois, é o norte interpretativo. (BUENO; 1993, p. 101)
Dessa forma, faz-se necessária a expansão do Direito do Trabalho, na
perspectiva da ampliação de sua tutela protetiva às novas formas de trabalho sem
proteção legal, advindos da reestruturação produtiva e das novas tecnologias.
Provavelmente a Reforma do Judiciário, Emenda Constitucional nº 45, promulgada em
08.12.2004, corrobora com a expansão do juslaboralismo ao ampliar a competência da
Justiça do Trabalho, apesar de tão somente apresentar avanços na seara processual.
Tarso Genro já projetava:
Um novo Direito do Trabalho, portanto, e uma nova tutela, devem
emergir gradativamente ao lado do atual Direito do Trabalho cuja crise
terminal será de longo curso. Não só porque a revolução na produção,
em andamento, precisa conviver durante um longo tempo com algo do
sistema jurídico originário da segunda revolução industrial, mas porque
a defesa “conservadora” de seus princípios ajuda a tensionar para que,
na “ponta” da moderna sociedade, comece a emergir gradativamente
um novo sistema protetivo, cujo alcance e conteúdo ainda não estão
definidos. (GENRO; 2002, p 184/185)
Este novo Direito do Trabalho, além da proteção aos trabalhadores
subordinados – empregados, trará novas tutelas. Frise-se que, com o fundamento na
dignidade humana e no princípio da proteção, os sujeitos do Direito Laboral serão, além
dos empregados, os parassubordinados e os autônomos, observando-se a criação de
tutelas específicas e proporcionais à dependência, assegurando a todos um mínimo de
direitos essenciais a uma vida digna. Nesses termos, Tarso Genro (2002, p. 143/144)
sugere a seguinte pauta: tutela para a prestação de serviços; tutela para os contratos de
equipes; remuneração mínima para serviços sem qualificação; redução da jornada laboral;
ocupação do tempo livre em serviços comunitários; socialização dos postos de trabalho;
reinserção produtiva dos sem qualificação; entre outros.
De outro lado, a redução da jornada de trabalho com manutenção do salário e
a vedação do labor extraordinário são propostas que emergem com substrato coerente, a
fim de estabelecer a prevalência da dignidade humana. Os avanços tecnológicos e
organizativos impuseram aumentos de produtividade em cada vez tempos menores de
trabalho. Quando as primeiras máquinas começaram a ser utilizadas no século XVIII, as
jornadas de trabalho ultrapassavam as dezoito horas diárias, além das condições
aviltantes destinadas às mulheres e crianças. O início do século XX foi consagrado pela
conquista da jornada de oito horas diárias, embora isto ainda não tenha ocorrido em todo
o mundo. Atualmente, alguns países praticam jornadas de quarenta, trinta e seis e trinta
horas semanais, isto é, tem-se até jornadas de seis horas diárias. Nessa perspectiva, quiçá
o século XXI surpreenda com jornadas ainda menores dos que as atuais.
O aumento de custos não é óbice à redução da jornada, por uma segunda idéia,
originada na colaboração dos avanços tecnológicos e suas contribuições ao mundo do
trabalho, ou seja, obtém-se mais e mais riqueza com menos tempo de trabalho.
Um volume constante ou mesmo crescente de riqueza é produzido com
quantidades rapidamente decrescentes de trabalho, o trabalho de tempo
reduzido deve ter direito a rendimento integral. Mas este rendimento
integral deve ser um rendimento binômio: uma parte paga pelas
empresas em remuneração ao trabalho executado; uma outra parte que
será crescente, paga pela sociedade para compensar (ou recompensar) a
retração do valor salarial diretamente ligado à duração do trabalho.
(GORZ, apud AZNAR; 1995, p. 14)
Em termos conclusivos, defende-se a manutenção da tutela do empregado e a
necessidade de invenção de novas tutelas para os trabalhadores heterogêneos e
diferenciados são indicativos para a superação da crise do Direito do Trabalho. Todavia,
a ontologia juslaborista – que inspira a expansão do Direito do Trabalho, indica que a
proteção ao trabalho é a própria proteção do homem e de sua dignidade e que, portanto,
não deve se restringir a somente uma categoria de trabalhadores, os empregados. Enfim,
assegurar proteção ao todo e qualquer tipo de trabalho é assegurar proteção ao homem e
sua dignidade, valor maior da Constituição e da própria sociedade.
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Orientação Sexual e Discriminação no Emprego

Rodolfo Pamplona Filho

Sumário: 01. Liberdade. 01.01. Noções conceituais. 01.02. Previsões constitucionais da tutela da liberdade. 01.03. Limites ao exercício absoluto da liberdade. 02. Liberdade sexual. 02.01. Conceito. 02.02. Escorço histórico. 03. Orientação sexual. 04. Discriminação pela orientação sexual. 05. Orientação sexual e discriminação no emprego.

01. Liberdade

Como um pressuposto lógico para entender o tema principal deste trabalho, é imprescindível tecer algumas considerações sobre a noção jurídica de liberdade e, consequentemente, de liberdade sexual.
Para isto, com fins meramente didáticos, separamos a análise entre noções conceituais e previsões constitucionais de tutela da liberdade, conhecendo, em seguida, os limites ao seu exercício absoluto.

01.01. Noções conceituais

Afinal de contas, o que é este instituto aparentemente tão precioso chamado liberdade?
Valendo-nos da dogmática nacional, encontramos alguns conceitos interessantes de liberdade.
Na concepção gramatical da palavra, verificamos os seguintes significados, segundo Aurélio Buarque de Holanda Ferreira:
"liberdade. [Do lat. libertate] S. f. 1. Faculdade de cada um se decidir ou agir segundo a própria determinação: Sua liberdade, ninguém a tolhia. 2. Poder de agir, no seio de uma sociedade organizada, segundo a própria determinação, dentro dos limites impostos por normas definidas: liberdade civil; liberdade de imprensa; liberdade de ensino. 3. Faculdade de praticar tudo quanto não é proibido por lei. 4. Supressão ou ausência de toda a opressão considerada anormal, ilegítima, imoral: Liberdade não é libertinagem; Liberdade de pensamento é um direito fundamental do homem. 5. Estado ou condição de homem livre: dar liberdade a um prisioneiro, a um escravo. 6. Independência, autonomia: O Brasil conquistou a liberdade política em 1822. 7. Facilidade, desembaraço: Liberdade de movimentos. 8. Permissão, licença: Tem liberdade de deixar o país. 9. Confiança, familiaridade, intimidade (às vezes abusiva): Desculpe-me, tomei a liberdade de vir aqui sem telefonar-lhe; Muito comunicativo, toma às vezes certas liberdades que me aborrecem. 10. Bras. V. risca (4): 'Trazia os cabelos caprichosamente penteados, com uma abertura ao meio, formando liberdade.' (De Araújo Costa, O Menino e o Tempo, p. 29.) 11. Filos. Caráter ou condição de um ser que não está impedido de expressar, ou que efetivamente expressa, algum aspecto de sua essência ou natureza. [Quanto à liberdade humana, o problema consiste quer na determinação dos limites que sejam garantias de desenvolvimento das potencialidades dos homens no seus conjunto - as leis, a organização política, social e econômica, a moral, etc. -, quer na definição das potencialidades que caracterizam a humanidade na sua essência, concebendo-se a liberdade como o efetivo exercício dessas potencialidades que caracterizam a humanidade na sua essência, concebendo-se a liberdade como o efetivo exercício dessas potencialidades, as quais, concretamente, se manifestam pela capacidade que tenham os homens de reconhecer, com amplitude sempre crescente, os condicionamentos, implicações e conseqüências das situações concretas em que se encontram, aumentando com esse reconhecimento o poder de conservá-las ou transformá-las em seu próprio benefício.]"
Como podemos constatar, a palavra "liberdade" apresenta diversos conteúdos, o que pode dificultar a nossa compreensão posterior do que seja liberdade sexual, tema deste capítulo.
Buscando, porém, um conceito estritamente jurídico, encontrado, por exemplo, no Dicionário da Academia Brasileira de Letras Jurídicas, vemos que este apresenta, no que se refere à liberdade, o seguinte conceito:
"LIBERDADE. S. f. (Lat. libertas) Faculdade que tem cada um de agir em obediência apenas a sua vontade. OBS. Esse conceito lato sofre restrições no estádio do homem coletivizado, sendo peculiar tão-somente ao estágio da horda."
Ora, a imprecisão e generalidade do conceito jurídico-dogmático de liberdade é, por certo, uma caixa de pandora da qual podemos retirar as mais amplas interpretações.
Ilustrando tal afirmação, o conceito mencionado, que o próprio dicionarista declara ser peculiar ao estágio de horda, nos permitiria concluir que o ato de matar alguém, por exemplo, nada mais é do que o exercício pleno da liberdade absoluta do indivíduo de optar entre o certo e o errado, o bem e o mal ou a vida e a morte.
E talvez essa ponderação seja realmente bastante razoável, se levarmos em consideração que a conduta humana no convívio social (e a qualificação que o Direito lhe empresta) nada mais é do que o exercício diuturno de escolha entre o lícito e o ilícito, vez que, conforme ensinava Machado Neto, ao comentar a Teoria Egológica do Direito, a “liberdade é, nessa perspectiva, um prius donde há que partir. Originariamente toda conduta é permitida. Todo direito é assim um contínuo de licitudes e um descontínuo de ilicitudes. Daí que o princípio ontológico não seja conversível como o é o juízo analítico ‘tudo que não é ilícito é lícito’ (...) Sobre esse prius da liberdade humana, esse contínuo de licitudes, a determinação normativa vai estabelecendo as ilicitudes” .
A faculdade de livre agir, porém, não pode ser interpretada de forma extrema. Desde a mais tenra idade, fomos condicionados com frases do tipo “minha liberdade (meu direito) termina onde começa a (o) do outro” ou “liberdade sem responsabilidade não é liberdade, mas sim libertinagem”, em que, instintivamente, já começamos a inferir a existência de limites ao exercício da liberdade.
Logo, se é certo que a liberdade é algo inerente à capacidade volitiva do homem, escolhendo a prática deste ou daquele tipo de ação, muito mais evidente é que haverá certos tipos de atos que serão reprimidos pela Ordem Jurídica, como verdadeiras limitações ao exercício absoluto da liberdade.
Tais limites, do ponto de vista da teoria geral do Direito, nada mais são do que o estabelecimento de sanções a determinados tipos de conduta que podem ser praticadas pelos indivíduos, no exercício de sua liberdade. Em outros termos, podemos afirmar que um preceito proibitivo não impede, de forma alguma, que a pessoa, no exercício de sua liberdade individual, pratique a conduta vedada pelo Direito, mas sim estabelece, em verdade, que a opção por aquela conduta implicará, deontologicamente, na aplicação de uma determinada sanção pela violação da ordem jurídica.
Os limites, portanto, ao exercício absoluto da liberdade do ser humano nada mais são do que a proteção que o ordenamento jurídico empresta a determinados bens jurídicos como a vida, a propriedade e a própria liberdade.
E que limites são esses?
Apenas por uma questão de metodologia, deixaremos para enfrentar esta questão no tópico 01.03 (“Limites ao exercício absoluto da liberdade”), onde pretendemos aprofundar o tema.
Por enquanto, fiquemos somente com a conclusão de que é possível haver restrições (resistências) à liberdade absoluta (ou, mais tecnicamente, ao exercício absoluto da liberdade), pelo que, lembrando as poéticas palavras de Carlos Fernandez Sessarego, tenhamos a convicção de que "la libertad es como un ave que para volar necesita de la resistencia del aire. La libertad tiene necesidad ontológica de otras existencias libres y de cosas. La libertad es coexistencia, compresencia. Necesita de sus potencias psíquicas, de su cuerpo, que son las evolturas próximas; del mundo interno en contraposición con el mundo externo que son los 'otros' seres. El mundo interno es lo 'mio', lo que pertenece en forma inmediata al centro espiritual del hombre como libertad."

01.02. Previsões constitucionais da tutela da liberdade

A tutela jurídica da liberdade, pelo que vimos no tópico anterior, está incrustada em todo o ordenamento jurídico positivo, pois o estabelecimento de qualquer regra de conduta implica, em última análise, na disciplina do exercício da liberdade.
Entretanto, pela sua evidente importância na hierarquia das normas, parece-nos bastante conveniente destacarmos, no texto da vigente carta constitucional, algumas previsões específicas da tutela jurídica da liberdade.
Sem sombra de qualquer dúvida, se for possível estabelecer um grau de importância entre os diversos dispositivos constitucionais, o art. 5º por certo se destacaria no conjunto de preceitos normativos da nossa analítica constituição.
Ao estabelecer, no seu caput, que “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade”, o constituinte consagrou, como pilar da ordem jurídica positiva, a isonomia de tratamento entre os indivíduos, o que, definitivamente, não é tarefa das mais fáceis, tendo em vista as evidentes desigualdades fáticas ocorrentes na realidade prática.
Neste sentido, Manoel Gonçalves Ferreira Filho observa que o “princípio da isonomia oferece na sua aplicação à vida inúmeras e sérias dificuldades. De fato, conduziria a inomináveis injustiças se importasse em tratamento igual para os que se acham em desigualdade de situações. A justiça que reclama tratamento igual para os iguais pressupõe tratamento desigual dos desiguais. Isso impõe, em determinadas circunstâncias, um tratamento diferenciado entre os homens, exatamente para estabelecer, no plano do fundamental, a igualdade” .
A disciplina procedida pelos 77 (setenta e sete) incisos e 2 (dois) parágrafos do art. 5º abarca diversos princípios jurídicos intimamente relacionados com a noção de liberdade, como, a título meramente exemplificativo, a igualdade de direitos entre homens e mulheres (inciso I, de fundamental importância para nosso estudo), a liberdade de expressão e pensamento (incisos IV, V e IX) e a liberdade de consciência e crença (inciso VI).
Vale destacar, dentre tais estipulações, o preceito do § 1º, que estabelece que as “normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata”. Assim sendo, não há como se negar, do ponto de vista dogmático, o exercício da proteção de um direito ou garantia fundamental somente pela inexistência de uma lei específica definidora dos limites da correspondente garantia ou direito fundamental.
Tal conclusão não se choca, de forma alguma, com o disposto no inciso II (“Ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”), mas sim, a contrario sensu, reforça-o, vez que o princípio da legalidade, mesmo sendo a base fundamental do estado de Direito, não pode ter a sua importância exageradamente exaltada, pois, socorrendo-nos novamente do Prof. Manoel Gonçalves Ferreira Filho, a “missão emprestada à lei resulta de uma concepção bem clara e definida a seu respeito. Para Montesquieu, como para os principais autores da Revolução Francesa, a supremacia da lei é o primado da razão, conseqüentemente da justiça. O direito, para eles, não é criação arbitrária, fruto de qualquer ‘volonté momentanée et capricieuse’ (De l’esprit des lois, Livro 2, Cap. 4). É a descoberta do justo pela razão dos representantes. Conseqüentemente, ‘a lei não tem o direito de vedar senão as ações prejudiciais à sociedade’ (Declaração de 1789, art. 5º, primeira parte)” .
Feitas tais considerações, enfrentemos, finalmente, a questão dos limites ao exercício absoluto da liberdade.

01.03. Limites ao exercício absoluto da liberdade

“Libertas est naturalis facultas ejus quod cuique facere libet nisi si quid vi aut jure prohibetur”.
O brocardo latino, que significa que a “liberdade é a faculdade natural de fazer o que se deseja, desde que não haja proibição da força ou direito”, já nos traz um indício de onde encontraremos as limitações ao exercício absoluto da liberdade.
De fato, onde mais estariam os limites ao exercício absoluto da liberdade, senão no próprio Direito que garante a liberdade?
Afastado o exercício puro do arbítrio, justificador da referência à “força” na expressão lembrada, somente a própria ordem jurídica, com o fito de garantir seus bens mais preciosos, é que teria a legitimidade para estabelecer limitações à liberdade individual das pessoas.
Os limites ao exercício absoluto da liberdade do ser humano nada mais são, portanto, do que a proteção que o ordenamento jurídico empresta a determinados bens jurídicos como, v.g., a vida, a propriedade e a própria liberdade.
Desta forma, a primeira conclusão que se tira desta reflexão é que o cerne da liberdade jurídica reside na possibilidade de fazer tudo aquilo que não é proibido pelo seu próprio ordenamento. Esta conclusão, entretanto, suscita novas questões: o que pode ser proibido ou não dentro da Sociedade? Existem limites para a limitação da liberdade?
A análise do inciso XI do art. 5º do texto constitucional pode nos ajudar, agora sob um método indutivo, a responder esta questão.
Com efeito, dispõe o referido preceito que “a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial”.
Nesta regra constitucional, podemos verificar que o direito amplo de ir e vir é limitado pelo direito de propriedade, vez que ninguém pode penetrar em casa alheia sem o consentimento do morador.
Todavia, havendo um interesse jurídico maior, seja da sociedade lato sensu (flagrante delito, desastre ou necessidade de prestação de socorro), seja do Estado (invasão durante o dia, por ordem judicial), a limitação constitucional encontra um outro óbice (da mesma natureza) que a releva, criando o que chamamos de “limitação da limitação”.
E qual o motivo para a imposição desta “limitação da limitação”?
A resposta mais óbvia (e, por isso mesmo, rasteira) seria: porque assim o quis o legislador.
Recusando, porém, o magister dixit, podemos encontrar a justificativa lógica para tais limitações justamente no objetivo, em última instância, da garantia do exercício da liberdade e da organização da sociedade.
O que devemos ter sempre em mente é que a possibilidade de limitação (ou sancionamento, como consideramos mais técnico numa perspectiva lógico-jurídica) do exercício absoluto da liberdade individual – possibilidade esta aqui indubitavelmente reconhecida – deve tomar como premissa o prevalecimento da própria liberdade.
Assim sendo, para conhecer e estabelecer os limites do exercício pleno da liberdade, teremos que tomar como bússola inarredável a constatação de qual é o ponto em que tal exercício fere o interesse social, público ou do outro indivíduo. Somente observando o postulado básico da liberdade geral é que verificaremos, em cada caso concreto, quais os limites impostos pela ordem jurídica ao exercício absoluto da liberdade individual.
Sobre a matéria, observa José Afonso da Silva que “o legislador ordinário, quando expressamente autorizado pela Constituição, intervém para regular o direito de liberdade conferido. Algumas normas constitucionais, conferidoras de liberdades e garantias individuais, mencionam uma lei limitadora (art. 5º, VI, VII, XIII, XV, XVIII). Outras limitações podem provir da incidência de normas constitucionais (p. ex. art. 5º, XVI: reunir-se pacificamente, sem armas; XVII: fins lícitos e vedação de caráter paramilitar, para as associações, são conceitos limitadores; restrições decorrentes de estado de defesa e estado de sítio: arts. 136, § 1º, e 139).
Tudo isso constitui modos de restrições das liberdades, que, no entanto, esbarram no princípio de que é a liberdade, o direito, que deve prevalecer, não podendo ser estirpado por via de atuação do Poder Legislativo nem do poder de polícia. Este é, sem dúvida, um sistema importante de limitação de direitos individuais, mas só tem cabimento na extensão requerida pelo bem-estar social. Fora daí é arbítrio” .

02. Liberdade sexual

Entendida a noção de liberdade, bem como a questão da possibilidade de limitação de seu exercício absoluto, já podemos enfrentar um dos pontos nevrálgicos do nosso tema.
A questão básica é a seguinte: existe uma liberdade sexual? E, caso a resposta seja positiva, em que consiste este instituto e como instrumentalizar a sua garantia?
A primeira pergunta (“Existe uma liberdade sexual?”) pode parecer, ao leitor menos avisado, no mínimo, uma tolice: “É lógico que existe uma liberdade sexual”, ouviríamos!
É mesmo? – respondemos! Se a existência deste direito é, valendo-nos da expressão consagrada por Nelson Rodrigues, de uma obviedade ululante, então qual é o motivo para que haja tantos tabus e preconceitos no trato das relações jurídicas decorrentes do exercício da liberdade sexual dos indivíduos?
A resposta poderá ser encontrada justamente na nossa premissa de raciocínio de que o exercício da liberdade (e a liberdade sexual também está aí incluída!) na sociedade moderna pressupõe a observância de alguns limites, existentes deontologicamente não por um simples arbítrio do legislador, mas sim como uma exigência para a sobrevivência da própria liberdade garantida.
No caso da liberdade sexual, o conhecimento destes “limites” se dará pelo respeito ao exercício alheio do próprio direito de liberdade sexual, além de outros bens jurídicos constitucionalmente tutelados, como a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas .
Assim sendo, é preciso “dissecar doutrinariamente” a liberdade sexual, apresentando um cabedal doutrinário que pavimente seu estudo, em especial no que diz respeito às relações homem/mulher na sociedade, o que faremos nos próximos tópicos.

02.01. Conceito

Segundo a Professora Maria Helena Diniz, em seu colossal “Dicionário Jurídico”, a expressão “liberdade sexual” pode ser assim entendida:
“LIBERDADE SEXUAL. Direito penal. Direito de disposição do próprio corpo ou de não ser forçado a praticar ato sexual. Constituirão crimes contra liberdade sexual: o ato de constranger mulher à conjunção carnal, mediante violência ou grave ameaça; o atentado violento ao pudor, forçando alguém a praticar ato libidinoso diverso da conjunção carnal; a conjunção carnal com mulher honesta, mediante fraude; o ato de induzir mulher honesta, mediante fraude, a praticar ato libidinoso.”
A noção jurídica de liberdade sexual está ligada, portanto, à idéia de livre disposição do próprio corpo, concepção esta que se relaciona a uma visão individualista do ser humano, que pode ser sintetizada na frase, tão ouvida entre os apologistas da legalização das drogas, de que “cada um faz com seu corpo o que quiser”.
Sobre a liberdade sexual, ensina Magalhães Noronha:
“Tal liberdade não desaparece nas próprias espécies inferiores, onde se observa que geralmente o macho procura a fêmea, quando ela se acha em cio, isto é, predisposta ao coito. Nelas, também, a requesta antecedente é o fato observado pelos zoólogos.
Os odores, as cores, as formas, a força, o som, as danças etc. são sempre recursos postos em prática antes do amplexo sexual.
No homem, a requesta antecede ao ato, mesmo entre os selvagens. São sempre a música e a dança os atos preliminares da união dos sexos, como anota Havelock Ellis.
Fácil, pois, é conjeturar quão intenso é o primitivismo bárbaro do que atenta contra a disponibilidade sexual da pessoa” .
Há, portanto, sedimentação doutrinária acerca da existência e importância da liberdade sexual para o convívio entre os indivíduos na sociedade moderna, estando a mesma, inclusive, tutelada por normas de natureza criminal.
Mas nem sempre foi assim!
A conquista de um direito à liberdade sexual não foi entregue de mão beijada a homens e, especialmente, mulheres. Estas, em especial, travaram uma longa batalha para a conquista dos seus espaços, principalmente no que diz respeito ao reconhecimento da ordem jurídica, política e social do seu direito de “dispor do seu próprio corpo”.

02.02. Escorço histórico

As relações (sociais e de Direito) entre os sexos, através dos tempos, não estiveram sempre nesta condição de isonomia legal de tratamento, hoje garantida na esmagadora maioria dos ordenamentos jurídicos do mundo .
Na verdade, desde a antiguidade, prevalecia a idéia preconcebida de superioridade masculina, em que a mulher era reduzida à condição muito próxima de objeto, não somente sexual, mas também de Direito . Na visão sintética de Aloysio Santos, “em termos sexuais, as mulheres não representavam senão o papel de outro organismo vivo, capaz de satisfazer as necessidades do homem e da matriz reprodutora. Ela era, então, simples objeto do sexo, socialmente subjugada pelo homem” .
Até mesmo na Bíblia Sagrada, mais especificamente no livro de Gênesis, encontramos fundamento para tal conduta discriminatória e subjugadora, vez que, ao punir o homem por ter sucumbido à tentação, Deus dirigiu-se à mulher, condenando-a: “Multiplicarei grandemente a tua dor, e a tua conceição; com dor terás filhos; e o teu desejo será para o teu marido, e ele te dominará” (Gn., 3, 16).
Vale destacar, porém, que, nas sociedades primitivas, a primeira forma de divisão do trabalho também tomava como parâmetro o sexo, vez que aos homens era destinada a atividade de pesca e caça; e, às mulheres, a coleta dos frutos e, em fase posterior, também a cultura da terra.
Nas sociedades antigas mais organizadas, vale transcrever o testemunho sempre autorizado de Alice Monteiro de Barros, que preleciona que “a história registra, sobretudo no Egito antigo, que a tecelagem constituía uma ocupação reservada às mulheres, competindo-lhes tosquiar as ovelhas e tecer a lã. Também há registros de trabalho das mulheres na ceifa do trigo, no preparo da farinha e na massa do pão, enquanto os homens o assavam. Está documentado, nos papiros, que as mulheres mais pobres trabalhavam em grandes obras de construção. Depois de assinalar o papel político desempenhado por algumas mulheres, onde sobressai o reinado de Hatshepsut, em meados do segundo milênio, afirmam alguns historiadores que o antigo Egito não considerou, em princípio, a mulher como um ser inferior, provavelmente dada a mediocridade de suas preocupações militares. Acontece que a tradição exigia que os faraós fossem filhos de Amon (deus do Sol); em conseqüência, logo apareceu uma lenda segundo a qual esse grande deus teria envolvido Ahmasi, mãe de Hatshepsut, em uma nuvem de perfume, anunciando que aquela daria à luz uma filha, que o representaria na Terra. E para vencer os preconceitos da época, sustentam os historiadores que Hatshepsut, ao assumir totalmente o poder, exercido durante certo período com o irmão, teve que sacrificar seu comportamento inicial, de agir como mulher, conduzindo-se à semelhança de um faraó, vestida de homem e usando barba, como, aliás, nos mostram os grandes monumentos” .
O certo é que, apesar de algumas ressalvas históricas, as visões preconcebidas da mulher como um ser inferior dominaram a Antigüidade, seja nas sociedades primitivas, seja no Egito, Grécia ou antiga Roma .
Com a Idade Média, a situação jurídica da mulher não foi muito modificada, apesar da sexualidade humana ter passado a exercer um lugar de destaque nas preocupações sociais, principalmente em função da notória influência da Igreja. Como observa Aloysio Santos, dada esta ascendência, em especial, do Catolicismo, “estava a cargo da hierarquia religiosa, na época, a definição do comportamento considerado eticamente ideal para ser seguido pelos jovens e o grupo familiar cristão. Na verdade, a Igreja medieval se intrometia com tudo aquilo que se relacionasse com a vida dos povos e, por isso, teve de assumir o encargo da crítica da sexualidade humana” .
Reprimida pelos representantes da fé e pela sociedade em geral, nada mais cabia à mulher do que se limitar à sua condição de “sexo frágil”, patrimônio de seu senhor, ligando-se às atividades caseiras e à vida doméstica, sendo considerada, em função da sua presumida debilidade física, como uma mão-de-obra secundária.
Na Idade Moderna, com o Renascimento, a mulher toma, do ponto de vista social, uma posição de maior relevo, seja pela redenção procedida pelos poetas, como Dante e Petrarca, que exaltavam a figura feminina, seja pelo próprio Cristianismo, que ao dignificá-la pelo casamento monogâmico, possibilitou-lhe, no âmbito do lar, acesso à leitura e às coisas da inteligência e ciência, “aparecendo as figuras das ‘preciosas’, das ‘sábias’ e ‘enciclopédicas’. ”
Neste panorama histórico das relações jurídicas relacionadas com a emancipação e o trabalho da mulher, a Revolução Industrial, sem sombra de qualquer dúvida, é um marco divisório para a efetiva conquista do espaço feminino na sociedade moderna.
Com efeito, o surgimento da máquina serviu para equilibrar o desnível existente entre o trabalho do homem e da mulher, porque menor a força física a ser despendida. Assim sendo, por mais contraditório que possa parecer, é com o início da exploração industrial do trabalho da mulher que esta consegue dar seus primeiros passos para a necessidade de reconhecimento da igualdade (com o respeito às diferenças essenciais, acrescentamos nós!) de tratamento com os homens.
Ressalte-se que esta introdução das mulheres no mercado de trabalho não se deu em função de um reconhecimento jurídico de sua igualdade, mas sim, a contrario sensu, pela sua condição de mão-de-obra mais dócil e barata, o que nos remete à velha conclusão de que é sempre o dinheiro, a “mola-mestra do mundo”, que está por trás das grandes transformações sociais e jurídicos, nelas incluindo o próprio surgimento do Direito do Trabalho.
Como observam Orlando Gomes e Elson Gottschalk, o “emprego de mulheres e menores na indústria nascente representava uma sensível redução do custo de produção, a absorção de mão-de-obra barata, em suma, um meio eficiente e simples para enfrentar a concorrência. Nenhum preceito moral ou jurídico impedia o patrão de empregar em larga escala a mão-de-obra feminina e infantil. Os princípios invioláveis do liberalismo econômico e do individualismo jurídico davam-lhe a base ética e jurídica para contratar livremente, no mercado, esta espécie de mercadoria. Os abusos desse liberalismo cedo se fizeram patentes aos olhos de todos, suscitando súplicas, protestos e relatórios (Villermé) em prol de uma intervenção estatal em matéria de trabalho de mulheres e menores. Com as primeiras leis que surgiram, em diversos países europeus, disciplinando esta espécie de trabalho, surgiu, também, para o mundo juridico, a nova disciplina: O Direito do Trabalho. Com efeito, foi o Moral and Health Act, de Roberto Peel, em 1802, a primeira manifestação concreta que corresponde à idéia contemporânea do Direito do Trabalho” .
E é com este reconhecimento da exploração da mão-de-obra feminina, cuja inserção no mercado de trabalho já havia se tornado um fato irreversível, que os construtores do Direito começam a centrar esforços numa efetivação da tutela de igualdade entre os sexos.
Fazendo um salto histórico, é importante destacar o papel da revolução feminista (ou sexual), movimento de emancipação feminina desencadeado na segunda metade deste século, através do qual as mulheres conseguiram o reconhecimento desta isonomia com os homens, pelo menos nos dispositivos normativos ocidentais. A atuação das “feministas” pela garantia e certificação de seus direitos, simbolizada na famosa queima pública dos sutiãs, possibilitaram a demanda por um tratamento igualitário com a execração da superioridade masculina discriminatória.
Do ponto de vista do Direito positivo brasileiro, vale destacar que tal igualdade está consagrada no texto constitucional, a saber, no art. 5º, I, da Carta Magna, ao preceituar que “homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição”.
Todavia, o simples reconhecimento jurídico da imperatividade do tratamento isonômico entre os sexos não é suficiente para se garantir, na prática, a efetividade do exercício responsável da liberdade sexual.
A agressividade (decorrente, talvez, da permissividade deste final de século) com que as condutas de natureza sexual são praticadas na sociedade moderna têm gerado novos enfoques de discussão sobre os limites do comportamento social aceitável.
Ao conquistar o reconhecimento jurídico da liberdade sexual, homens e mulheres passaram a conviver com uma nova onda de problemas, antes não encarados de forma séria, dentre os quais a questão da orientação sexual, tema que será tratado no próximo tópico.

03. Orientação sexual.

Os termos “orientação sexual” ou “opção sexual” somente passam a ter sentido em um regime de liberdade sexual, pois a própria noção de liberdade está intimamente relacionada com a possibilidade de alternativas.
Por isto mesmo, quando há a proposta de se falar em orientação sexual, não há como se negar que o tema básico é, indubitavelmente, o homossexualismo, pois a relação heterossexual já é a naturalmente imposta pelo espírito de conservação e reprodução do ser humano.
Dissertar, porém, sobre o homossexualismo não é tarefa fácil, tendo em vista as multiformes visões ideológicas existentes em cada setor da sociedade.
O pensamento cristão, embora não condene o homossexual enquanto ser humano, repudia veementemente a prática do homossexualismo, considerando-a pecado, como podemos lembrar, no velho testamento, do episódio de Sodoma e Gomorra, valendo destacar também o seguinte trecho do novo testamento: “25 Pois mudaram a verdade de Deus em mentira, e honraram e serviram mais a criatura do que o Criador, que é bendito eternamente. Amém. 26 Pelo que Deus os abandonou às paixões infames. Porque até as suas mulheres mudaram o uso natural, no contrário à natureza. 27 E, semelhantemente, também os varões, deixando o uso natural da mulher, se inflamaram em sua sensualidade uns para com os outros, varão com varão, cometendo torpeza e recebendo em si mesmos a recompensa que convinha ao seu erro. 28 E, como eles se não importaram de ter conhecimento de Deus, assim Deus os entregou a um sentimento perverso, para fazerem coisas que não convém;” (Rom-1,25-28).
Já em relação ao pensamento dos setores mais tradicionais da psicologia, os compêndios clássicos já não trazem mais o homossexualismo como uma patologia, mas mantém a postura de considerá-lo como um desvio da conduta sexual normal.
Os ativistas dos direitos humanos, por sua vez, valorizam o aspecto volitivo da conduta homossexual, qualificando-a como uma simples opção individual, em matéria de sexo, sendo sintomático do caráter preconceituoso da sociedade a expressão “o amor que não mostra o nome”, poeticamente utilizada pelos grupos de militância gay
E é justamente este aspecto do preconceito que abordaremos no próximo tópico.

04. Discriminação pela orientação sexual.

Discriminação, como sabemos, consiste no tratamento desigual ou preferencial de alguém, prejudicando outrem.
Ora, o caráter preconceituoso com que a conduta homossexual é encarada na sociedade é um elemento importante para a constatação da possibilidade fática de ocorrência de atos discriminatórios contra si.
Se é certo que grandes espaços foram conquistados através dos tempos, no que diz respeito à liberdade sexual, notadamente das mulheres, mas certo ainda é que indubitavelmente há muito a evoluir, principalmente em relação ao homossexual.
Um bom exemplo disso foi o projeto de parceria civil, de autoria da Deputada Marta Suplicy, que, com a bem-intencionada e razoável intenção de regularizar a situação patrimonial de duas pessoas do mesmo sexo que tivessem uma vida em comum, dando-lhe um status semelhante à da união estável, acabou conhecido como a “lei do casamento gay”, gerando tanta repercussão (e execração), que acabou sendo rejeitado no Poder Legislativo.
Certo, porém, é que, independentemente da visão ideológica, política, filosófica ou religiosa de cada indivíduo em relação ao homossexualismo, não há como se negar a cidadania ao homossexual, relegando-lhe à marginalidade e à hipocrisia de somente ser aceito se a sua vida pessoal estiver relegada a quatro paredes.
Todavia, como o preconceito (e a discriminação) grassa fortemente na nossa multiforme sociedade, é lógico que isto não poderia deixar de ocorrer na seara da relação de emprego, onde o poder e o tratamento diferenciado podem se tornar tragicamente complexos.

05. Orientação sexual e discriminação no emprego.

Por reconhecer que a relação empregatícia é um campo fértil para a propagação de práticas discriminatórias do ponto de vista geral, o legislador brasileiro vem se preocupando, há algum tempo, com a adoção de políticas regulamentadoras da matéria.
É o caso, por exemplo, da Lei 9.029, de 13/04/95, que proíbe “a adoção de qualquer prática discriminatória e limitativa para efeito de acesso a relação de emprego, ou sua manutenção, por motivo de sexo, origem, raça, cor, estado civil, situação familiar ou idade”, tipificando criminalmente, inclusive, algumas destas práticas.
É de se destacar, porém, que, apesar de falar em sexo, não há referência a orientação sexual como um dos parâmetros proibidos de discriminação, o que reflete como a questão ainda é complexa na mentalidade dos representantes da sociedade brasileira.
E como toda ação gera uma reação, constatamos, por parte dos grupos de militância homossexual, uma tendência muito forte de reiteração da conduta que se convencionou chamar de “patrulhamento sexual”, em uma busca de uma revisão da história moderna, para tentar encontrar, em vultos históricos, um comportamento compatível com sua opção sexual.
No estado da Bahia, a título exemplificativo, testemunhamos sérias polêmicas envolvendo os membros do GGB (Grupo Gay da Bahia) e MNU (Movimento Negro Unido), vez que o primeiro “ousou” sustentar a tese de que Zumbi dos Palmares era homossexual, o que gerou grande resistência na comunidade negra baiana (a maior do Brasil), inclusive, com atos de vandalismo noticiados pela imprensa.
Outro nome da história brasileira que foi tachado de “gay” pelo GGB (cujo Presidente é Professor Titular da Universidade Federal da Bahia, na área de sociologia) foi Lampião, o que também envolveu grande controvérsia com os historiadores e biógrafos do “Rei do Cangaço”.
Este tipo de conduta, embora injustificável, é facilmente explicável como uma busca a um reconhecimento social “na marra”, numa espécie deformada de “ação afirmativa” para prestigiar a minoria discriminada.

Estas são as contribuições que apresento, por enquanto, para a discussão da matéria. O tema, sem qualquer sombra de dúvida, é dos mais polêmicos, carecendo, ainda, de maiores digressões. Ficamos satisfeitos, porém, se conseguimos suscitar algumas reflexões para este assunto que, na linguagem G.L.S., há muito já deveria ter saído do armário...

Tutela Coletiva e Desemprego: O que o Ministério Público do Trabalho pode fazer contra o Desemprego?

Rodolfo Pamplona Filho

O que o Ministério Público do Trabalho pode fazer contra o desemprego?
A resposta apriorística é nada!
Essa afirmação provocativa visa, apenas, a estimular a reflexão.
É preciso ter uma visão macro do desemprego, que é um fenômeno que não diz respeito ao Direito do Trabalho tradicional, mas sim às diretrizes políticas e econômicas das entidades privadas e governamentais.
Quando se afirma que o Ministério Público do Trabalho, a priori, não pode fazer nada contra o desemprego, em verdade, está-se apenas afirmando que se tudo ficar do jeito que está (ou mesmo piorar!), não será uma derrota exclusiva do M.P.T. ou de outro segmento de operadores do Direito, mas sim de toda a sociedade e de cada cidadão.
Todavia, sem querer parecer contraditório (até mesmo porque afirmei inicialmente que a primeira resposta era apriorística), afirmo, peremptoriamente, que o Ministério Público do Trabalho tem, sim, dentre suas funções, o combate efetivo ao desemprego.
Isto porque basta olhar o art. 127 da Constituição Federal de 1988, no que diz respeito às atribuições do MP (“O Ministério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis”) para ver a relevância da atuação do Ministério Público do Trabalho, como ramo especializado.

Quanto ao desemprego, somente a previsão de que é princípio constitucional da ordem econômica a busca da concretização do pleno emprego já nos autoriza refletir sobre a possibilidade da atuação do ministério público do trabalho nesta seara .
Vale aqui fazer um parêntese: não é somente porque está previsto na C.F./88 (no "livrinho", como diria o saudoso Ulysses Guimarães) que a previsão é concreta a ou se efetiva. Se a constituição federal proclamar: "é proibido morrer" ou, no didático exemplo alemão, "todo homem tem o direito de ser feliz", isto não quer dizer que o comando seja cumprido. Se assim fosse, preferiria, homenageando Thiago de Mello, "que o homem respeite o outro homem como um menino respeita o outro menino, que o homem ame outro homem, como o menino ama um outro menino".
Contudo, o fato de ter sido alçado à parâmetro constitucional, como vontade soberana e imutável do povo, da sociedade e da ordem jurídica nos confere um postulado ideológico que deve ser levantado como a bandeira de atuação.
E está na sagradas escrituras, em João 11, 40: “respondeu-lhe Jesus: não te hei dito que, se creres, verás a glória de Deus”.
É preciso incorporar a luta pelo pleno emprego não somente ao discurso, mas também na conduta e na atuação diuturna.
Se a regra constitucional não é efetiva, creiamos que, através da atuação do direito "lato sensu", podemos fazer a nossa parte para a realização deste sonho. Crer é essencial, sonhar é mais importante que respirar, navegar é preciso, viver não é preciso...
É talvez um sonho pueril imaginar uma sociedade justa. É, por certo, uma tolice acreditar que todo crime - todo ilícito - será punido. É, todavia, um desastre social ter certeza e consciência da impunidade.
E é justamente no combate à esta “impunidade”, no sentido mais amplo da palavra, que penso na atuação do Ministério Público do Trabalho.
Ingressando, portanto, na dogmática, não há limites para a criatividade humana na possibilidade de atuação do M.P.T. no combate "micro" ao desemprego.
Combate ao desemprego em uma visão "micro" significa, em síntese, fazermos a nossa parte, tais quais andorinhas que, com seus bicos, jogam gotinhas d'água no incêndio da floresta.
Sejamos, não andorinhas, mais um exército de albatrozes, que podem carregar muito mais água, mesmo com a convicção pragmática e realista de que todo esforço é pouco.
Alguns exemplos podem ser dados dentro desta proposta de atuação do Ministério Público do Trabalho:

a) medidas que visem à resguardar o acesso de deficientes a postos de trabalho: há respaldo normativo para que indivíduos portadores de deficiência possam, em iguais condições, em concursos públicos. Há notícias de ações, através do parqüet, impugnando editais de concurso que não ressalvam as cotas para deficientes;
b) a ação civil pública pode ser usada também, na defesa de um direito difuso, para obrigar a realização de concursos, o que evitaria a incidência do precedente 85 da Seção de Dissídios Individuais do Tribunal Superior do Trabalho. Em verdade, a contratação no serviço público tem sido, muitas vezes, um caso típico de “falta de vergonha institucionalizada “, pois mesmo realizando concursos, contrata-se do mesmo jeito e, tempos depois, quando assume um novo administrador, declara extintos os contratos porque nulos, na forma da Constituição Federal, mas contratando novos apadrinhados. No dizer de Boris Casoy, isto é uma vergonha!
c) diligências para limitar a prestação de horas extraordinárias com habitualidade (e trabalho extraordinário com habitualidade parece, indubitavelmente, uma contradição em termos, apesar de sabemos que, na prática, isto é mais comum do que possa pensar vossa vã filosofia), incentivando contratações;
d) a própria disciplina da terceirização, embora já aceita na forma do Enunciado 331 do colendo Tribunal Superior do Trabalho, deve ser analisada em cada caso concreto, uma vez que já se fala, sem qualquer pudor, em "quarteirização" ou mesmo "quinteirização";
e) as diligências, com o combate diuturno, notadamente na Procuradoria Regional do Trabalho de Campinas (a quem rendemos nossas homenagens) às cooperativas fraudulentas é outro exemplo em que a atuação para a preservação da ordem jurídica também propicia a luta contra o desemprego;
f) por fim, a atuação do ministério público como mediador, ou mesmo ajuizando ações civis públicas, e evitando o inadimplemento contumaz dos direitos trabalhistas valoriza a relação empregatícia.

Todas estas questões clamam a atuação do M.P.T. que, em verdade, vai trabalhar muito mais com aspectos políticos de negociação do que em uma atuação meramente aplicadora do Direito.
Sim, porque somente sendo muito ingênuo para acreditar que o processo judicial, este instrumento limitado e formalista, pode ser o meio adequado para a solução de todos os males do desemprego, como se fosse uma "panacéia" surreal.
Nossa luta é pelo direito e com direito, e pela justiça e com a justiça, mas não com o processo e pelo processo.
Envolver-se com processo judicial implica atuar com o formalismo das regras processuais e da própria mentalidade dos órgãos julgadores e somente vale a pena pelo seu efeito didático.
O Ministério Público do Trabalho tem de assumir uma postura inteligente, estratégica e, muitas vezes maquiavélica com a realidade que enfrenta.
Para combater, de forma eficaz, o desemprego, o M.P.T. tem de mostrar a sua cara para a sociedade, abrindo o diálogo, através de vários institutos e instrumentos, como, por exemplo, as audiências públicas, os inquéritos civis públicos, com orientações e recomendações, não somente expedindo ofícios, mas comparecendo aos locais de trabalho para ouvir as partes e literalmente "constranger" as pessoas para a necessidade de cumprimento de preceitos básicos de convívio social. É preciso interagir até mesmo para abusar a paciência, pois isto gera um custo que será levado em conta quando se pensar em descumprir, novamente, a legislação trabalhista.
A função do parqüet, portanto, inclusive no combate ao desemprego, é ser, com o perdão da irreverência verbal, o "chato de plantão", que combate o pensamento único de que não podemos fazer nada para alterar a realidade.
Assim sendo, volto à questão: o que o ministério público do trabalho pode fazer contra o desemprego?
Agora respondo: muita coisa, desde que combatam o bom combate, compreendendo quais são as suas armas efetivas, não raciocinando somente em termos processuais, mas sim em termos políticos de efetiva atuação.
Venceremos?
Sinceramente, não sei.
Sei apenas que prefiro a tristeza da eventual derrota do que a frustração, a impotência e a vergonha de nem ter sequer lutado.