domingo, 10 de abril de 2011

O CRIME DE “REDUÇÃO À CONDIÇÃO ANÁLOGA DE ESCRAVO” E O CUMPRIMENTO DE DIREITOS TRABALHISTAS

Tercio Roberto Peixoto Souza


Sumário: 1. INTRODUÇÃO. 2. DA CONSTITUIÇÃO COMO MATRIZ DO SISTEMA JURÍDICO. 3. O TRABALHO ESCRAVO NO CÓDIGO PENAL. 4. DO TRABALHO EM CONDIÇÃO DIGNA. 5. CONCLUSÃO

1. INTRODUÇÃO

Inegável a relevância dada ao valor do trabalho humano no Texto Constitucional. A Constituição Federal de 1988 enuncia alguns princípios, apresentados como aptos a assegurar o desenvolvimento nacional, através da soberania econômica nacional.

No capítulo destinado à ordem econômica, houve expressa menção de que aquela é fundada na valorização do trabalho humano e na iniciativa privada. Isso significa, conforme leciona JOSÉ AFONSO DA SILVA, na enunciação de que o Estado brasileiro é capitalista, mas a ordem econômica atribui absoluta relevância aos valores do trabalho humano. E essa prioridade tem o sentido de orientar a intervenção do Estado na economia.

A liberdade de iniciativa envolve a liberdade de indústria e comércio, ou liberdade de empresa e de contrato. Como dito, no período do total liberalismo, tal liberdade assegurava aos proprietários a possibilidade de regular suas relações do modo que lhe tivessem por mais convenientes.

No contexto Constitucional, no entanto, a liberdade de iniciativa está condicionada ao fim da “justiça social”.

Como menciona JOSÉ AFONSO DA SILVA, a iniciativa privada “será ilegítima quando exercida com objetivo de puro lucro e realização pessoal do empresário”

Assim, não é nova a conclusão de que o Texto Constitucional estabelece como parâmetros para o sistema produtivo a função social da propriedade, dos bens de produção, da empresa, do poder econômico.

Na lição de EROS GRAU:

“O princípio da função social da propriedade, para logo se vê, ganha substancialidade precisamente quando aplicado à propriedade dos bens de produção, ou seja, na disciplina jurídica da propriedade de tais bens, implementada sob compromisso com a as destinação. A propriedade sobre a qual em maior intensidade refletem os efeitos do princípio é justamente a propriedade, dinâmica, dos bens de produção. Na verdade, ao nos referirmos à função social dos bens de produção em dinamismo, estamos a aludir à função social da empresa”

Por isso, o Prof. WASHINGTON LUIZ DA TRINDADE menciona que “a mudança distingue-se pela superação do individualismo pelo primado social, em que até o contrato, instrumento de conciliação de vontades individuais, vira, na expressão de Khalil, um fato social”

Nesse contexto, o Direito do Trabalho deve servir como importante instrumento de composição entre interesses contrapostos: o do trabalhador e o do capitalista.

A imposição de direitos mínimos aos trabalhadores deve assegurar justamente a dignidade daquele que somente possui como meio de sobrevivência a sua força de trabalho.

Em contraponto com tal entendimento, o fenômeno da imposição de escravidão ao trabalhador surge como a violação extrema aos seus direitos sociais.

Trata-se de uma das mais severas restrições aos direitos dos trabalhadores, e que por isso mesmo deve ser duramente combatida.

O presente ensaio visa elucidar algumas questões postas em relação ao tipo penal previsto no art. 149 do Código Penal, cujo nomen júris é “redução a condição análoga à de escravo”, com a redação que lhe foi atribuída em 2003, por meio da Lei 10.803, de 11 de dezembro.

2. DA CONSTITUIÇÃO COMO MATRIZ DO SISTEMA JURÍDICO

Não se pode jamais perder de vista que é do Texto Constitucional que irradiam todos os valores que nutrem o sistema jurídico, notadamente aqueles que limitam o poder do Estado, tais como os previstos na ciência do Direito Tributário ou do Direito Penal.

De fato, é a partir da leitura do Texto Constitucional que se obtém com alguma clareza os valores necessários à aplicação prática das regras incriminadoras, previstas na legislação penal, ou expropriantes previstas na legislação tributária.

Apesar das severas críticas que lhe tem sido apresentadas, o que seria comprovado pela própria abundância de Emendas Constitucionais e da inadequação de alguns direitos nela encartados , não há dúvida acerca do caráter democrático do Texto Constitucional de 1988.

Os valores consagrados na Carta Magna visam, sem qualquer dúvida, o alcance de uma sociedade mais justa, na qual o bem estar do ser humano teria sido colocado como finalidade maior.

Daí a importância de impor-se condições mínimas para o desenvolvimento das relações de trabalho, para a consagração de uma sociedade mais justa e igual.

Cumpre aqui mencionar o entendimento apresentado por EDILTON MEIRELES , no sentido de que:
“A Constituição Brasileira de 1988 se apresentou como produto das forças políticas que a formularam, sendo ela portadora de um projeto que consagrou a ruptura com ordem anterior. Neste caminho, a Constituição de 1988, como instrumento transformador, buscou romper com o nosso passado autoritário e com a ordem econômica liberal. E essa ruptura fica bem clara nos arts. 1º e 3º da CF. A ruptura com o passado autoritário se concretizou com a fundação do Estado Democrático de Direito (art. 1º da CF), fundado na cidadania e no pluralismo político (incisos II e V do art. 1º), tendo como um dos objetivos fundamentais a criação de uma sociedade livre e promotora do bem de todos sem qualquer distinção (incisos I e IV do art. 3º da CF). Para concretizar o projeto de Estado Democrático de Direito, o constituinte, então, destacou os seus valores fundamentais: a liberdade e a igualdade, elevando-os ao grau mais alto de proteção, como instrumentos de concretização da democracia representativa.”

Aquele Mestre menciona ainda que o Constituinte elegeu o trabalho como instrumento de transformação, elevando-o a valor relevante na nova ordem social.

Isso porque, ainda de acordo com aquele, para se alcançar uma nova homogeneidade social, o trabalho é o instrumento de mobilidade social, pois através dele se promove uma maior e eqüitativa distribuição dos bens e rendas entre as diversas classes.

Para tanto, ainda em sede constitucional, é possível identificar um sistema de garantias ao trabalho, através do qual assegura-se aos seus principais sujeitos os direitos trabalhistas fundamentais, individuais e coletivos, bem como formulando princípios protecionistas, como facilmente se identifica no art. 7º da CF, através do seu elenco de direitos constitucionais trabalhistas, fundado no princípio da proteção.

Garantiu-se, no Texto Constitucional, a proteção social, num processo de integração sócio-econômica dos trabalhadores.

Ainda fundado nas lições de EDILTON MEIRELES, podemos mencionar que tem-se identificado as garantias de formação de uma política agrícola que assegure a habitação ao trabalhador rural (inciso VIII do art. 187), as ações de proteção à saúde do trabalhador (inciso II do art. 200), a proteção do meio ambiente do trabalho (inciso VIII do art. 200), a proteção do trabalhador em desemprego involuntário (inciso III do art. 201), a promoção da integração dos necessitados ao mercado de trabalho (inciso III do art. 203), a política de educação com formação para o trabalho (inciso IV do art. 214), a proteção do menor trabalhador (incisos I a III do § 3º do art. 227), além da proteção dada pela previdência social, entre outras.”

Nesse contexto, pois, indaga-se qual seria o papel do Direito Penal, na concretização dos direitos sociais ora referidos.

Hoje desenvolve-se fortemente a noção de Estado de Direito Democrático e Social, baseado no princípio da proteção do bem jurídico como fator preponderante para a incriminação de condutas e em um Direito Penal pautado na subsidiariedade, na intervenção mínima, no garantismo, na individualização da responsabilidade.

E justamente neste diapasão serve o Texto Constitucional como a régua na medida dos valores socialmente postos.

Àquilo o que se apontou na Carta Constitucional a sociedade, o Estado, ou seja, a iniciativa privada e pública devem obediência.

Não poderia, então, nem o Estado, nem tampouco o particular, atuar em desencontro com tais valores.

Sobre o ponto, cumpre citar o entendimento apresentado por EVANDRO PELARIN, quando fala do Direito Penal nesse contexto:

“ Como acentuou LUISI, os princípios “especificamente penais” visam à afirmação dos direitos do homem e do cidadão e à limitação do papel do Estado a garantir a efetivação e a eficácia dos mencionados direitos”

Assim, parece que o Direito Penal está legitimado à tutela dos interesses ora discutidos.

3. O TRABALHO ESCRAVO NO CÓDIGO PENAL

Antes de falar precisamente acerca do tipo penal previsto no art. 149 do Código Penal, faz-se necessária uma abordagem acerca da questão do trabalho escravo.

Como faz referência GABRIELA NEVES DELGADO , a Declaração Universal dos Direitos Humanos, em seu art. 4º, determina que “ninguém será mantido em escravidão ou em servidão; a escravidão e o tráfico de escravos serão proibidos em todas as suas formas”.

No mesmo sentido, a própria Constituição Federal de 1988 proíbe o trabalho forçado, até mesmo para efeito do cumprimento de pena, como facilmente se depreende no art. 5º, inciso XLVII.

Ainda como referido por aquela Professora, o trabalho realizado em condições análogas à de escravo é um dos principais exemplos de exploração humana na contemporaneidade, antítese do direito fundamental ao trabalho digno.

Como leciona NELSON HUNGRIA, nos seus comentários ao Código Penal, sob o nome de plagium, o direito romano punia a escravização do homem livre bem como a compra e venda ou assenhoramento do escravo alheio.

Com efeito, há muito estava consagrado no Código Penal, mais especificamente em seu art. 149, o tipo assim vazado: “Art. 149. Reduzir alguém a condição análoga de escavo: Pena – reclusão, de dois a oito anos”.

Tal dispositivo teve a sua redação alterada pela Lei nº. 10.803/2003, para ficar assim estabelecido:

“Art. 149 – Reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto: Pena – reclusão, de dois a oito anos, e multa, além da pena correspondente à violência. § 1º - Nas mesmas penas incorre quem: I – cerceia o uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho; II – mantém vigilância ostensiva no local de trabalho ou se apodera de documentos ou objetos pessoais do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho. § 2º - A pena é aumentada de metade, se o crime é cometido: I – contra criança ou adolescente; II – por motivo de preconceito de raça, cor, etnia, religião ou origem.”

A alteração legislativa, segundo alguns, decorreu do fato de que o tipo penal antes apresentado era por demais vago, o que praticamente inviabilizava a sua aplicação prática.

Assim, editou-se a nova redação do aludido dispositivo, contra a qual severas críticas tem sido direcionadas. Embora não seja o escopo do presente, não podemos deixar de fazer referência ao fato de que muitas críticas têm sido direcionadas à nova redação, notadamente ao fato de que a Lei enunciou meios e formas pelas quais o crime poderia ser praticado e acrescentou-se majorantes, o que acabou por gerar condição especial para a prática do crime (a relação ou um vínculo trabalhista), e a execução, que antes era livre, passou a ser praticado apenas nas hipóteses previstas na lei.

No presente trabalho, não se tratará acerca de eventuais impropriedades redacionais ou sistemáticas do tipo em referência, uma vez que o escopo pretendido é apuração do princípio da dignidade humana como valor enunciado naquele dispositivo.

Para tanto, inicia-se a abordagem fazendo referência ao fato de que, ao comentar o dispositivo, em sua redação original, NELSON HUNGRIA já dizia que o crime de que ora se trata é a completa sujeição de uma pessoa ao poder de outra. Nele, visa-se a proteção do status libertatis, ou seja, a liberdade no seu conjunto de manifestações.

Aponta o mestre que entre o agente o sujeito passivo se estabelece uma relação tal, que o primeiro se apodera totalmente da liberdade pessoal do segundo, ficando este reduzido, de fato, a um estado de passividade idêntica àqueles que viviam em cativeiro.

Nesse contexto, importante a evidenciação do conceito de trabalho escravo, de acordo com o que consta do artigo 2°, item 1, da Convenção n° 29 da OIT, que menciona ser o trabalho forçado ou obrigatório, todo trabalho ou serviço exigido de um indivíduo sob ameaça de qualquer penalidade e para o qual ele não se ofereceu de espontânea vontade.

Ou seja, igualmente sob o ponto de vista daquela Organização Internacional a nota característica do conceito, então, seria a liberdade individual.

Note-se, ademais, que entre as situações-tipo identificadas pelo Código Penal, houve sensível avanço, pois ampliou-se o bem jurídico protegido não somente em relação ao trabalho forçado, mas igualmente em relação ao trabalho em condições degradantes.

Ao tratar da matéria, GUILHERME DE SOUZA NUCCI, diz que o trabalho forçado é critério para se identificar o tipo do art. 149 do Código Penal, conceituando-o como a atividade desenvolvida de maneira compulsória, sem voluntariedade, pois implica em alguma forma de coerção caso não desempenhada a contento.

Justamente por isso, segundo se enuncia, o Crime acima, cujo nomen juris é “Redução a condição análoga à de escravo” estaria agrupado no Capítulo VI do Código Penal, em que se trata justamente dos Crimes contra a liberdade individual.

Como leciona ELA WIECKO V. DE CASTILHO :

“No crime de redução a condição análoga à de escravo a lei expressa que o bem jurídico protegido é a liberdade pessoal. Ensina Hungria que "as diversas liberdades asseguradas ao homem e cidadão não são mais que faces de um mesmo poliedro: a liberdade individual. A primeira e mais genérica expressão desta é a liberdade pessoal, assim chamada porque diz mais diretamente com a afirmação da personalidade humana. Compreende o interesse jurídico do indivíduo à imperturbada formação e atuação de sua vontade, à sua tranqüila possibilidade de ir e vir, à livre disposição de si mesmo ou ao seu status libertatis, nos limites traçados pela lei. Trata-se, em suma, do direito à independência de injusto poder estranho sobre a nossa pessoa"

Sobre a questão da liberdade, notável é o posicionamento de FRANZ VON LIST , para quem a liberdade pessoal, no direito penal, tem por escopo a proteção da livre manifestação da vontade.

Segundo ainda o mestre alemão, a liberdade individual pode ser ofendida sob tantas formas independentes quantos são os diversos modos do seu exercício.

Contudo, enuncia que a ofensa à liberdade, como livre manifestação da vontade, pode ser quanto: a) ao impedimento de que a vontade seja exercida de acordo com certa direção (constrangimento); b) o impedimento oposto à livre locomoção (seqüestração da liberdade) e; c) sujeição de uma pessoa ao poder físico de outra (tráfico de escravos).

No que pertine ao quesito liberdade individual, a jurisprudência tem reconhecido a sua violação com a imposição de relação de dependência firmada entre as vítimas e seu agenciador, seja por intermédio de pressão psicológica, seja pela retenção de documentos ou de outros meios aptos a ensejar temor aos sujeitos passivos do crime.

Ainda de acordo com os Tribunais Pátrios, o tipo referido não visa uma situação jurídica, mas, sim, a um estado de fato.

Tanto que, segundo menciona, o crime pode ser praticado de variados modos, sendo mais comum o uso de fraude, retenção de salários, ameaça ou violência, mas não se limitando a tais circunstâncias.

De acordo com CEZAR ROBERTO BITENCOURT, a sujeição completa de uma pessoa ao poder da outra suprime, de fato, o status libertatis, caracterizando a condição análoga à de escravo, embora o status libertatis, de direito permaneça inalterado.

Segundo aquele, não se trata, pois, de simples encarceramento ou confinamento, mas de toda e qualquer situação em que se estabeleça a submissão da vítima à posse e dominação de outrem.

4. DO TRABALHO EM CONDIÇÃO DIGNA

Ocorre que, da leitura da redação do mencionado artigo 149 do Código Penal, como já mencionado, observa-se que o trabalho em condições análogas às de escravo deve ser considerado gênero, no qual se subdivide, como espécies, o trabalho forçado e o trabalho em condições degradantes.

Ou seja, não é somente a falta de liberdade, o trabalho forçado, ou na classificação de VON LIST, o constrangimento, que se adéqua ao tipo referido, mas igualmente o trabalho em circunstâncias degradantes.

Não por outra razão, de acordo com a lição de CEZAR BITENCOURT, o bem jurídico protegido no aludido tipo penal é não somente a liberdade individual, mas também a dignidade pessoal do trabalhador.

Como bem faz referência o mestre “reduzir alguém a condição análoga à de escravo, fere, acima de tudo, o princípio da dignidade humana, despojando-o de todos os seus valores éticos-sociais, transformando-o em res, no sentido concebido pelos romanos.”

E arremata:
“Reduzir alguém a condição análoga à de escravo equivale a suprimir-lhe o direito individual de liberdade, deixando-o completamente submisso aos caprichos de outrem, e exatamente aí reside a essência desse crime, isto é, na sujeição de uma pessoa a outra, estabelecendo uma relação entre sujeito ativo e sujeito passivo análogo à escravidão: o sujeito ativo, qual senhor e dono, detém a liberdade do sujeito passivo em suas mãos”

Aliás, quanto à questão do consentimento do paciente do crime referido, há muito NELSON HUNGRIA menciona que: “é de todo ineficaz o consentimento do paciente. Ninguém pode abdicar, total e indefinidamente do seu stauts libertatis, pois tanto importaria a anulação da própria personalidade.”

Ou seja, ainda no que pertine à liberdade individual, HUNGRIA já reconhecia ser absolutamente irrelevante o consentimento do ofendido. Nesse mesmo sentido, MIRABETE, DELMANTO, BITENCOURT E NUCCI.

Nesse sentido, ainda, tem se manifestado as cortes pátrias, evidenciando que a conduta criminosa prevista no art. 149 do Código Penal consiste na sujeição de uma pessoa ao domínio do agente, que restringe a liberdade e a própria personalidade do indivíduo.

Mas igualmente se encontra em tal posição aquele que tem sido privado das mais elementares garantias constitucionais, vivendo em condições subumanas, cumprindo jornada de trabalho excessiva, sofrendo descontos injustificados nas suas remunerações, por exemplo, sendo irrelevante o consentimento da vítima

Com efeito, como já mencionado, o Trabalho está intimamente vinculado à manutenção da dignidade humana e não pode ser utilizado como instrumento para promoção da desigualdade.

Como mencionado por JOSÉ CLAUDIO MONTEIRO DE BRITO FILHO, enunciando mais concretamente no que se configuraria o trabalho em condições degradantes, se poderia identificar tal configuração naquela atividade em que há a falta de garantias mínimas de saúde e segurança, além da falta de condições mínimas de trabalho, de moradia, higiene, respeito e alimentação.

A manutenção de condições mínimas de trabalho, previstas no texto constitucional, trata-se de evidente direito de cunho social, que visa assegurar um mínimo de igualdade entre os indivíduos.

Como faz referência, DIRLEY CUNHA JUNIOR:

“Como já enfatizado, os direitos de defesa são aqueles que demarcam um âmbito de proteção ao indivíduo, pondo-o a alvo de qualquer investida abusiva por parte do Estado. Criam, assim, verdadeiras posições subjetivas que outorgam ao sujeito o poder de exercer positivamente os próprios direitos (liberdade positiva) e de exigir omissões dos poderes estatais e de particulares, de modo a evitar agressões lesivas por parte deles (liberdade negativa)”

A máxima da valorização do trabalho humano impõe a manutenção de condições mínimas de sobrevivência dos trabalhadores. Ou seja, não há como serem limitados os direitos a tal ponto que se comprometa a própria vida e saúde do trabalhador e da sua família.

Nota-se, assim que, apesar das críticas referidas, parece adequada a incriminação da conduta no que pertine à manutenção do trabalho em condições subumanas.

Nesse mesmo sentido, cumpre fazer referência também ao Anteprojeto da Parte Especial do Código Penal, de 1992, no qual, como bem referido por ELA WIECKO V. DE CASTILHO, a escravidão nas relações de trabalho mereceu tratamento especial, passando a integrar o Capítulo até agora inexistente, denominado "dos crimes contra a dignidade da pessoa humana", mantido no Título "dos crimes contra a pessoa".

5. CONCLUSÃO

Parece legítima, portanto, a incriminação da conduta ora referida. Com efeito, a redução do ser humano à condição análoga à de escravo não pode ser tolerada sob qualquer prisma.

Além de reduzir o seu igual à condição de coisa, o sujeito ativo do crime referido vale-se de um dos mais relevantes instrumentos de transformação social, o trabalho, para a manutenção da miséria e da desigualdade.

Por si só, tal conduta já deveria ser rechaçada.

De outro modo, a sujeição do trabalhador a condições absolutamente indignas de trabalho, com a violação à própria dignidade humana, igualmente autoriza a atuação do Direito Penal.

Com efeito, aparentemente não viola os princípios encartados na Carta Magna, dentre os quais os da subsidiariedade e fragmentariedade, a imposição do crime referido.

De fato, não há dúvida de que a dignidade humana é posta como um dos principais fundamentos do Estado Nacional. E assim sendo, parece claro que todos os instrumentos devam ser colocados à disposição para a satisfação de tais valores.

Dessa forma, parece coerente com os valores apontados no ordenamento nacional a incriminação da conduta que viola tão duramente a dignidade humana, retirando do trabalhador um dos poucos bens que lhe resta: a sua condição de ser humano!

BIBLIOGRAFIA

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O PRINCÍPIO DA RAZOABILIDADE NA CONSTITUIÇÃO ABERTA

Tercio Roberto Peixoto Souza

INTRODUÇÃO

Partimos do entendimento de que o sistema jurídico do estado de direito brasileiro trata-se de um sistema aberto de regras e princípios, em que as regras, por sua especificidade, tratam o sistema constitucional de forma descritiva e minudente, enquanto os princípios, dado o seu caráter geral, servem como meio de ligação que dão a unicidade necessária ao todo normativo.

Na aplicação dessas normas, sejam princípios ou regras, cabe ao intérprete ter em vista, sempre, a potencialização máxima da ordem constitucional. A partir de tal fato, cumpre-lhe avaliar a carga normativa de cada dispositivo da Constituição, dando-lhe operatividade plena.

No entanto, sendo o Poder Constituinte originário fruto da conjugação de inúmeras forças políticas em um dado momento histórico, é evidente o surgimento de eventuais princípios ou regras de aparente antinomia, dentro do texto normativo constitucional.

Neste processo, diante do caso concreto, cabe ao intérprete avaliar qual o mais importante dos interesses em jogo, fazendo com que, naquela hipótese, uma norma preceda a outra, usando-se do princípio da razoabilidade ou do devido processo legal material (proporcionalidade).

No presente artigo, trataremos da aplicação do princípio da razoabilidade, ou do devido processo legal material, na aplicação dos demais princípios constitucionais consubstanciados na Constituição Federal de 1988.

Algumas críticas são feitas à aplicação exarcebada do princípio da razoabilidade no processo de interpretação do texto constitucional, seja pela dificuldade em ser apurada, de forma objetiva, a correção do posicionamento do aplicador da norma constitucional ao caso concreto; seja pelo risco de instituir-se um governo de juízes, ou mesmo que o sistema normativo passe à mera casuística, sem uma unidade axiológico-normativa.

No caso brasileiro, preocupa ainda mais a questão da aplicação do princípio da razoabilidade, uma vez que, por questões processuais, o Supremo Tribunal Federal, no que pertine ao controle da constitucionalidade suscitada incidentalmente no curso das demandas judiciais, tem se limitado a apurar a suposta violação ao texto constitucional somente em caso em que entende ter havido violação direta ao texto constitucional.

Ocorre que, ordinariamente a aplicação equivocada dos princípios, inclusive quanto à sua valoração, é entendida como violação indireta, ou reflexa, do texto constitucional, fato que impediria ao jurisdicionado o manejo do recurso extraordinário para a corte constitucional, para a chancela, por aquele órgão, da intrepretação dada ao mandamento constitucional ao caso reclamado.

Tal fato determina a coexistência de decisões proferidas em casos semelhantes, de forma absolutamente distintas, que não devem coexistir em um mesmo sistema normativo, sob pena da manifesta incogruência lógico-normativa, incompatível com o Estado de Direito.


DA CONSTITUIÇÃO COMO SISTEMA JURÍDICO ABERTO DE REGRAS E PRINCÍPIOS

O sistema jurídico brasileiro trata-se de um sistema aberto de regras e princípios e como tal deve ser interpretado e aplicado.

Na lição do português J.J. Gomes Canotilho, na descodificação dessa afirmação, um sistema jurídico aberto de regras e princípios:

“(1) é um sistema jurídico porque é um sistema dinâmico de normas; (2) é um sistema aberto porque tem uma estrutura dialógica (Caliess), traduzida na disponibilidade e das normas constitucionais para captarem a mudança da realidade e estarem abertas à concepções cambiantes da e da ; (3) é um sistema normativo, porque a estruturação das expectativas referentes a valores, programas, funções e pessoas é feita através de normas: (4) é um sistema de regras e de princípios pois as normas do sistema tanto podem revelar-se sob a forma de princípios como sob a forma de regras.”

Exatamente esse o enquadramento do sistema jurídico brasileiro. O ordenamento jurídico pátrio apresenta-se como um sistema, ou seja, escalonado e organizado a partir de critérios e regras objetivamente consideradas; permeado de conceitos jurídicos indeterminados, que não tem interpretação unívoca e podem variar com o tempo; fundado na lei, conforme enuncia o artigo 5º, II, da Constituição Federal; formado de regras, normas jurídicas particularizantes, e princípios, normas jurídicas abstratas e indeterminadas.

Por sua vez, Celso Ribeiro Bastos, sobre o tema pontua:

“A Constituição é um sistema normativo aberto, dinâmico. Ela não é, nem pode ser um documento fechado, estático. Se é próprio da vida social estar em constante mutação, o fenômeno jurídico, que pretende fundamentalmente regular a vida em sociedade, não poderia deixar de sofrer alteração. Mesmo quando ele não tenha condições de se antecipar ou propiciar essa evolução, ele não pode deixar de, ao menos, acompanhá-la.”

Para tratarmos do tema da aplicação dos princípios ou regras no ordenamento jurídico constitucional, inicialmente cumpre-nos fixar a definição dos princípios e das regras, uma vez que ambos são espécies do gênero normas.

Para tanto, mais uma vez utilizaremos a definição adotada por Canotilho , que didaticamente propõe:

“Os princípios interessar-nos-ão, aqui, sobretudo na sua qualidade de verdadeiras normas, qualitativamente distintas de outras categorias de normas ou seja, de regras jurídicas. As diferenças qualitativas traduzir-se-ão, fundamentalmente, nos seguintes aspectos. Em primeiro lugar, os princípios são normas jurídicas impositivas de uma optimização, compatíveis com vários graus de concretização, consoante os condicionalismos fáticos e jurídicos; as regras são normas que prescrevem imperativamente uma exigência (impõe, permite ou proíbem) que é ou não cumprida (nos termos de Dwerkin: applicable in al-or-notting fashion); a convivência dos princípios é conflitual (Zagrebeslky), a convivência de regras é antinômica; os princípios coexistem, as regras antinômicas excluem-se. Conseqüentemente, os princípios ao constituem exigências de optimização, permitem o balanceamento de valores e interesses (não obedecem, como as regras, à ), consoante o seu peso e a ponderação de outros princípios eventualmente conflituantes; as regras não deixam espaço para qualquer outra solução, pois se uma regra vale ( tem validade) deve cumprir-se na exacta medida das suas prescrições, nem mais nem menos. Como se verá mais adiante, em caso de conflito entre princípios, estes podem ser objeto de ponderação, de harmonização, pois eles contém, apenas < exigências ou < standards> que, em primeira linha> (prima facie), devem ser realizados; as regras contém definitivas, sendo insustentável a validade simultânea de regras contraditórias. Realça-se também que os princípios suscitam problemas de validade e peso (importância, ponderação, valia); as regras colocam apenas questões de validade (se elas não são correctas devem ser alteradas).”

A partir da distinção ora estabelecida, fica bastante clara a idéia de que o sistema constitucional é brasileiro é um sistema aberto de regras e princípios. Em que pese a preservação do princípio da legalidade, a teor do artigo 5º, inciso II, da Constituição Federal, é certo que o sistema normativo nacional não se limita a uma disciplina exaustiva e completa do fenômeno social, como um sistema exclusivamente de regras. Se assim o fosse, teríamos um sistema absolutamente fechado, de difícil ou quase impossível acompanhamento da realidade social.

Por outro lado, verifica-se também que o nosso ordenamento jurídico não está conformado exclusivamente em princípios, cuja indeterminação, inexistência de regras precisas seria incapaz de assegurar alguma segurança jurídica ao cidadão, como em um sistema exclusivamente aberto.

Evidencia a distinção traçada pelo mestre português, que o sistema aberto implica na adequação entre regras e princípios no qual cabe às primeiras, a regulamentação específica do fenômeno jurídico, enquanto que aos últimos, a função sistêmica, de ligação, de conformação e adequação da norma à realidade social.

Da conjugação entre aquelas hipóteses normativas forma-se do direito constitucional, no dizer de Alexy “um sistema aberto de normas e princípios que, através de processos judiciais, procedimentos legislativos e administrativos, iniciativas dos cidadãos, passa de uma law in the books para uma law in action para uma .”

Ocorre que, no processo de aplicação das normas, justamente por força da função sistêmica e de conformação determinada pelos princípios, o intérprete, ao aplicar o comando legal, deve levar em conta o conteúdo axiológico, o caráter cogente e imperativo dos mesmos.

Nesse sentido ainda, cumpre destacar que, em um sistema normativo, os princípios possuem o papel fundamental de estabelecer os parâmetros tanto para o legislador quanto para o intérprete. Os princípios são, na lição de Celso Antônio Bandeira de Mello o:

“mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência, exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo que lhe confere a tônica e lhe dá sentido harmônico”

Os princípios servem como opções e critérios valorativos, de caráter normativo, que dão um sentido ao conteúdo jurídico posto. Servem como a conformação legítima dos valores sociais. Sendo assim, impedem que o aplicador aprecie o texto normativo em absoluta desconformidade com os valores normativamente estabelecidos, desconsiderando os anseios sociais mais legítimos.

No direito brasileiro, indubitavelmente os princípios são dotados de carga normativa, embora ainda haja algumas dificuldades na sua implementação através do Poder Judiciário, inapto a entender e atender as demandas sociais historicamente reprimidas.

No entanto, o aspecto que reputamos de maior interesse para o presente trabalho é o de que, no processo de formação do texto constitucional, o poder constituinte originário decorre da conjugação de uma infinidade de forças políticas, contrárias entre si ou em um mesmo sentido, em um determinado momento histórico, sendo a Constituição o documento resultante da conjugação dessas forças.

Tal fato implica que no texto constitucional, notadamente os descritivos, como é o caso da Constituição Federal de 1988, existam princípios que, aparentemente sejam antinômicos entre si.

E na aplicação desses princípios, supostamente antinômicos, é necessário que haja, por parte do aplicador do texto constitucional, uma apreciação dos princípios e valoração dos mesmos, para que, encontrando o valor albergado por cada uma nas normas, faça uma preceder a outra, embora isso não signifique que a norma precedida tenha deixado de fazer parte do ordenamento jurídico.

O próprio sistema faculta a precedência de um princípio em relação ao outro, para imposição da solução mais justa ao caso concreto.

Na aplicação, modulação dos princípios, o julgador deve guiar-se pela máxima da razoabilidade (proporcionalidade). A precedência de um princípio em relação ao outro pode ocorrer apenas e na medida do necessário à adoção da solução justa ao caso concreto. De acordo com Alexy:

“A norma mais fraca pode ser afastada apenas à medida que pareça necessário do ponto de vista lógico e sistemático; em todo caso, tem-se de respeitar seu conteúdo de valor fundamental concreto”.
A razoabilidade (proporcionalidade) tomada como princípio de aplicação das leis repousa no resultado sincrônico perfeito entre o posto da norma e o que dela é feita na experiência sócio política.

DA RAZOABILIDADE. O DEVIDO PROCESSO LEGAL MATERIAL

O princípio da razoabilidade tem sua origem e desenvolvimento ligado à garantia do devido processo legal, inscrita na Magna Charta, de 1215. Modernamente, a sua consagração se deu através das emendas 5ª e 14ª da Constituição dos Estados Unidos da América.

No país americano, o devido processo legal é marcado por duas fases: uma eminentemente formal, outra de cunho substancial, embora ambas subsistam e se completem até os dias de hoje. Ao lado da igualdade perante a lei, o princípio do devido processo legal foi grandemente utilizado como instrumento contra os abusos do poder legislativo e contra a discricionariedade administrativa naquele país.

A garantia do devido processo legal formal assegura ao cidadão a regularidade no processo judicial. Seu campo de incidência recai notadamente no direito ao contraditório e à ampla defesa.

O devido processo legal material, por sua vez, embora não seja de fácil compreensão, se traduz na idéia de justiça, de razoabilidade e expressão de um sentimento coletivo comum de determinada época. Na lição de Luiz Roberto Barroso:

“De toda a sorte, a clásula enseja a verificação da compatibilidade entre o meio empregado pelo legislador e os fins visados, vem como a aferição da legitimidade dos fins. Somente presentes essas condições poder-se-á admitir a limitação a algum direito individual. Aliás, tais direitos não se limitam aos que se encontram expressamente previstos no texto, mas também incluem outros, fundados nos princípios gerais de justiça e liberdade.”

E a razoabilidade, por sua vez, ainda de acordo com o citado mestre:

“ (...) é um parâmetro de valoração dos atos do Poder Público para aferir de se eles estão informados pelo valor superior inerente a todo ordenamento jurídico: a justiça. Sendo mais fácil de ser sentido do que conceituado, o princípio se dilui em um conjunto de proposições que não o libertam de uma dimensão excessivamente subjetiva. É razoável o que seja conforme a razão, supondo equilíbrio, moderação e harmonia; o que não seja arbitrário ou caprichoso; o que corresponda ao senso comum, aos valores vigentes em dado momento ou lugar.”

No Brasil, o princípio da razoabilidade ou do devido processo legal material está consagrado no artigo 5º, inciso LIV da Constituição Federal. Tal conformação determina que o intérprete da Constituição ao aplicá-la, sempre apure a razoabilidade da decisão a ser tomada no caso concreto.

Atento a essa exigência o Supremo Tribunal Federal, aplicando tal princípio, em caso paradigmático, suspendeu a vigência de Lei do Estado do Paraná que determinava a pesagem dos bujões de gás, à vista do consumidor, no ato da venda. A dificuldade material em cumprir a medida fez que com que a Corte constitucional decidisse pela irrazoabilidade da Lei.

Cumpre ainda aqui destacar que, embora utilizadas como sinônimas, como na doutrina alemã, alguns adotam critérios diferenciadores entre os princípios da razoabilidade e proporcionalidade, uma vez que, como dispõe Carmen Lúcia Antunes Rocha:

“É, pois, a razoabilidade diferente da proporcionalidade, que impede excessos na aplicação dos princípios constitucionais, pois aquela permite que se conheça o espírito destes princípios e acerte-se a sua interpretação e, conseguintemente, a sua aplicação, vale dizer, permite que se conheça o princípio considerado em si mesmo enquanto a proporcionalidade possibilita que se conheça em relação com os demais princípios e regras que compõe o sistema constitucional.” (Grifos do Autor)

Assim, a proporcionalidade nada mais seria do que o índice que permite a equiparação e valoração dos demais princípios constitucionais. No presente trabalho, adotamos o entendimento esposado pela Profa. Carmem Lúcia.

Na aplicação da máxima da razoabilidade, cabe ao interprete identificar qual dos valores albergados nos princípios em análise e que devem ser aplicados ao caso concreto para que a decisão seja mais justa possível.

Ocorre que, justamente no processo de apuração e valoração dos princípios com alta carga de subjetividade, reside problema de evidente complexidade e de difícil solução, uma vez que a indeterminabilidade de parâmetros objetivos é incompatível com o Estado Democrático de Direito.

Neste sentido o Prof. Walter Claudius Rothemburg defende o “sentir a constituição” por parte do aplicador do texto constitucional no momento da valoração, sem, contudo, propor que se abra mão do objetivismo normativo em favor de um intuicionismo jusfundamental.

Defende o Prof. Walter que:

“o acesso aos princípios se dá apenas por intermédio da razão, mas também da emoção. Dito de outro modo: o acesso à constituição não é só intelectual; também é afetivo. Os princípios que não conseguem ser perfeitamente formulados e compreendidos através da linguagem, conseguem, porém, traduzir sentimentos. Quiçá por isso a apreensão que se tenha dos princípios é, muita vez ou em parte, intuitiva; é uma impressão."

E completa:

“Para que o fenômeno de aplicação do direito não descambe para a irracionalidade (e acabe, talvez, por assentar-se no lastro da força bruta, econômica ou física), impõe-se; após a revelação da aceitação dessa dimensão não-intelectual dos valores, uma fundamentação racional e razoável.

Daí que é impossível uma visão exclusivamente intelectual dos princípios. Eles também são sentidos, experimentados no plano dos acessos. O acesso aos princípios não se dá somente por intermédio da razão, mas também da emoção.

De outro modo, o acesso à constituição não é somente intelectual, mas também afetivo. Por isso, a apreensão dos princípios é muitas vezes, ou em parte, intuitiva.

Nesse sentido, Paulo Bonavides apresenta o critério da proporcionalidade (razoabilidade) nos seguintes termos:

“o critério da proporcionalidade é tópico, volve-se para a justiça do caso concreto ou particular, se aparenta consideravelmente com a equidade e é um eficaz instrumento de apoio às decisões judiciais que, após submeterem o caso a reflexões prós e contras (Abwägung), a fim de averiguar se na relação entre meios e fins não houve excesso (Übermassverbot), concretizam assim a necessidade do ato decisório de correção. (Grifos do Autor)

O emprego do critério da proporcionalidade pode resultar sem dúvida no grave risco de um considerável reforço dos poderes do juiz, com a conseqüente diminuição do raio de competência elaborativa atribuída ao legislador.”

E arremata:

“Mas esse risco se atenua bastante quando o princípio da proporcionalidade, como via interpretativa entra em conexão com a chamada “interpretação conforme a Constituição” (...) Em outras, palavras, se houver a possibilidade de uma interpretação que faça transparecer a compatibilização da norma com a lei maior, há de prevalecer esta sobre as demais interpretações porventura cabíveis(...)” .

No entanto, em qualquer hipótese, para a aplicação dos princípios, é elementar que o julgador consiga demonstrar, objetiva, fundamentada e racionalmente os elementos da sua decisão.

Isto pois, se o motivo não existe ou dele o aplicador da Constituição concluiu de forma incompatível com os princípios aplicados ao caso, o ato será nulo, por inconstitucional.

Se é certo que “A lei às vezes degrada e avilta, corrompe e escraviza em ocasiões sociais e políticas de profunda crise e comoção, gerando a legalidade das ditaduras, ao passo que a Constituição é sempre a garantia do poder livre da autoridade legítima exercitada em proveito da pessoa humana”, e se “(...) só a Constituição liberta; unicamente ela devolve à cidadania a crença e a confiança na legitimidade do poder das leis”, como leciona Paulo Bonavides , certo é também que, “o antiformalismo, o discurso da suplantação do direito legal e o modismo do direito alternativo dos juizes legisladores foi assunto da ordem do dia, a experiência mostrou o alto custo social e político, em termos de segurança jurídica, dessa formulação que, no fundo, era a de um discurso anti-democrático ou no mínimo democraticamente cético.”, no dizer de Calmon de Passos .


DAS CRÍTICAS À APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA RAZOABILIDADE

O princípio da razoabilidade, tem sido duramente criticado, notadamente na Alemanha, sob vários aspectos. No presente tópico, entendo ser pertinente a crítica à aplicação ao princípio e a sua não sujeição ao Supremo Tribunal Federal, no controle de constitucionalidade suscitado no curso da demanda, como será demonstrado.

De acordo com a doutrina de Schmidt, citado por Paulo Bonavides, o emprego do princípio da razoabilidade ordinariamente demonstra evidente ausência de elementos objetivos aptos a ensejar alguma racionalidade à decisão. De acordo com o mesmo:

“O emprego do princípio da proporcionalidade, derivado do sistema de direitos fundamentais, representa quase sempre uma decisão, em última análise, difícil de fundamentar, que corresponde unicamente ao desejo e à vontade de quem toma a decisão, e por isso não pode pleitear reconhecimento geral.”

Wolfram Zitscher, por sua vez, também citado por Bonavides em seu Curso de Direito Constitucional diz que: “com o principio da proprocionalidade corre-se o risco de ver o Direito dissolvido na “justiça do caso particular”, comparando-se essa situação com aquela observada no século IV cujo resultado configurou na decadência e queda da cultura jurídica de baixa latinidade no Império Romano do Ocidente.”

Ressalte-se ainda o entendimento apresentado por Hans Huber, também citado naquela obra, que suscita a ameaça feita ao princípio da separação dos poderes, nos seguintes termos:

“De modo especial os princípios abertos de direito se tornam perigosos quando transpõe as respectivas fronteiras, abandonando dessa maneira seus conteúdos. É aí que eles favorecem os deslocamentos secretos de poder na organização do Estado, tais aqueles, por exemplo, ocorridos entre juiz e legislador e legislador e administrador, conforme há demonstrado.”

Sobre o tema, Xavier Philippe foi expresso ao preocupar-se com o rompimento da separação dos poderes em decorrência da aplicação do princípio da razoabilidade:

“O conteúdo fluido do princípio o autoriza, segundo seus detratores, a fazê-lo objeto de extensões incontroláveis. A invocação da proporcionalidade intervém como uma fórmula ritual eu serviria de álibi à jurisdição que o emprega, para questionar as decisões tomadas pelos diferentes órgãos (Legislativo, Executivo).”

E a preocupação é reforçada quando se observa que a transformação do princípio da razoabilidade em um chavão ou mero apelo à justiça, que não serve para decidir um problema jurídico, mas substituir as valorações objetivas sobre o texto Constitucional pelo subjetivismo do Juiz.

No caso brasileiro, reputamos da maior relevância a apreciação, pelo Supremo Tribunal Federal, da constitucionalidade e aplicação do princípio da razoabilidade, aplicada ao caso concreto, quando a questão em foco versar sobre a precedência de um princípio constitucional a outro.

A colisão e mitigação dos princípios trata-se de matéria que envolve diretamente a análise da valoração e do conteúdo normativo do texto constitucional.

E, não há dúvida de que “De todas as leis as que demandam maior inspeção, por isso mesmo que demandam o mais alto respeito, são as leis constitucionais; sua observância deve ser religiosa, pois que são o fundamento de todas as outras e da nossa existência e sociedade política”, conforme pontua Pimenta Bueno.

No entanto, o Supremo Tribunal Federal, ao interpretar o artigo 102, da Constituição Federal, que trata do Recurso Extraordinário, tem-se negado a apreciar questões ligadas à aplicação do princípio da razoabilidade ou do devido processo legal material, no controle de constitucionalidade em concreto, da decisão em que se aplicam princípios em face de valores consubstanciados no texto constitucional.

Segundo a reiterada jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, a hipótese configuraria violação reflexa e não direta ao texto constitucional, fato impeditivo do controle in concreto de constitucionalidade, por aquela Corte:

CONSTITUCIONAL – RECURSO EXTRAORDINÁRIO – OFENSA À CONSTITUIÇÃO – PROVA – Súmula 279-STF. I. – Somente a ofensa direta à Constituição autoriza a admissão do recurso extraordinário. No caso, o acórdão limita-se a interpretar normas infraconstitucionais. II. – Alegação de ofensa ao devido processo legal: ‘C.F., art. 5º, LV: se ofensa tivesse havido, seria ela indireta, reflexa, dado que a ofensa direta seria a normas processuais. E a ofensa a preceito constitucional que autoriza a admissão do recurso extraordinário é a ofensa direta, frontal. III. – Em relação à alínea c do art. 102, III, da Constituição Federal, também não merece acolhida o prosseguimento do recurso extraordinário. Incidência, no caso, das Súmulas 282 e 356-STF. IV. – O acórdão assenta-se na prova, que não se examina em recurso extraordinário (Súmula 279-STF). V. – Agravo não provido. (STF – AI-AgR 448046 – PR – 2ª T. – Rel. Min. Carlos Velloso – DJU 27.02.2004 – p. 00033)

No entanto, tal entendimento é por todo equivocado e deve de logo repensado.

Isto pois, tendo em vista que, na aplicação de princípios constitucionais colidentes, cabe ao intérprete a apreciação do conteúdo valorativo de cada um dos interesses envolvidos e a adequação desses valores ao caso concreto. E o aplicador simplesmente pode não estar “quantificando”, valorando de forma correta os ditos princípios, fato que por si só já determinaria o conhecimento do recurso pelo E. Supremo Tribunal Federal.

Ademais, no seu papel de corte constitucional, o Supremo Tribunal Federal não pode eximir-se na interpretação do texto normativo, muito menos, furtar-se ao papel de atribuir a correta carga valorativa aos princípios constitucionais suscitados pelas partes, notadamente pelo caráter impositivo dos referidos princípios.

Por outro lado, o Supremo Tribunal Federal também não pode furtar-se do seu papel de uniformização da jurisprudência nacional. Afinal, colide frontalmente com o princípio do Estado democrático de Direito, previsto no próprio texto constitucional, a coexistência de decisões absolutamente conflitantes, proferidas por diversos Tribunais, cujas hipóteses fáticas sejam iguais ou ao menos semelhantes.

Assim, deve-se registrar, nas críticas à aplicação do princípio da razoabilidade, a apreciação e ponderação dos demais princípios constitucionais, a omissão do Supremo Tribunal Federal, no caso brasileiro, na apreciação de tais decisões.

CONCLUSÃO


Como vimos, o sistema constitucional brasileiro consiste em um sistema aberto de regras e princípios no qual as regras estabelecem as hipóteses normativas descritivamente, enquanto os princípios servem como vetores dos valores consagrados no ordenamento jurídico pátrio.

No entanto, vimos que o texto constitucional decorre de um processo histórico, do qual a Constituição é o registro, em que é possível a existência de princípios aparentemente antinômicos entre si.

Ao intérprete e aplicador do texto constitucional, em caso de choque entre os princípios, cumpre, a ponderação dos valores albergados naquelas normas e a aplicação da mais justa ao caso concreto, seguindo as máximas da razoabilidade.

No entanto, ao tempo em que o princípio da razoabilidade favorece o processo de integração e atualização do sistema jurídico, outorga poderes ao aplicador da constituição que, se não for devidamente controlado, pode favorecer aos desvios.

No caso brasileiro, cumpre ao Supremo Tribunal Federal repensar o controle de constitucionalidade incidental, para que a questão da valoração e aplicação do princípio da proporcionalidade na modulação de princípios constitucionais, vinculados à própria carga axiológica da Constituição, não deixem de estar sujeitos ao seu crivo.

Afinal, se é certo o progresso do direito depende de um diálogo entre o coração e a mente, da mesma forma, é certo que no progresso do direito não podemos ser tão apaixonados a ponto de esquecermos a razão, nem tão racionais a ponto de perdermos de vista o seu próprio fim: o homem.





BIBLIOGRAFIA

1. Bonavides, Paulo. Curso de Direito Constitucional. Malheiros. 14 ed. 2004.
2. Bastos, Celso Ribeiro.Curso de Direito Constitucional. Celso Bastos Editora. São Paulo. 2002;
3. Barroso, Luiz Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição. Saraiva.São Paulo. 1996;
4. Canotilho, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Almedina, 3ª Ed. Lisboa.
5. Horta, Raul Machado. Direito Constitucional. Del Rey. 2 ed. 1999.;
6. Miranda, Jorge. Teoria do Estado e Da constituição. Forense. Rio de Janeiro. 2003;
7. Passos, José Joaquim Calmon de. Instrumentalidade do Processo e Devido Processo Legal. Revista de Processo102, ano 26, abril/junho 2001. p 58.
8. Rothemburg, Walter Claudius. Princípios Constitucionais. Sergio Fabris Editora. Segunda tiragem. Porto Alegre. P. 41.
9. Sampaio, José Adércio Leite Sampaio. Jurisdição Constitucional e Direitos Fundamentais. Del Rey. Belo Horizonte.2003;
10. Spínola, Ruy Samuel. Conceito de Princípios Constitucionais. RT. São Paulo.

terça-feira, 5 de abril de 2011

A E Q U I D A D E N O D I R E I T O D O T R A B A L H O

Rodolfo M. V. Pamplona Filho

SUMÁRIO: 1. Introdução. Significado gramatical de eqüidade; 2. Considerações acerca do conceito jurídico de eqüidade; 3. O problema das lacunas do direito: 3.1. Corrente da plenitude hermética do Direito; 3.2. Corrente da incompletude aberta do Direito; 4. A eqüidade na hermenêutica jurídica (aplicação, interpretação e integração das normas): 4.1. Hipóteses legais de decisão por eqüidade; 4.2. A eqüidade como meio supletivo de interpretação e integração das normas; 5. Análise do art. 127 do Código de Processo Civil; 6. Exemplo de decisões por eqüidade no Direito do Trabalho brasileiro; 7. Exemplo de lacunas no Direito do Trabalho brasileiro: decisões tomando a eqüidade como meio supletivo; 8. Conclusões e Advertência; 9. Bibliografia Consultada;

1. Introdução. Significado gramatical de eqüidade:

Discorrer acerca da equidade não é tarefa das mais fáceis para o estudioso do Direito, eis que tal vocábulo possui múltiplos significados, ensejando diversas interpretações.
A título ilustrativo, vejamos, por exemplo, a definição de Aurélio Buarque de Holanda:

"eqüidade. [Do lat. aequitate] S. f. 1. Disposição de reconhecer igualmente o direito de cada um. 2. Conjunto de princípios imutáveis de justiça que induzem o juiz a um critério de moderação e de igualdade, ainda que em detrimento do direito objetivo. 3. Sentimento de justiça avesso a um critério de julgamento ou tratamento rigoroso e estritamente legal. 4. Igualdade, retidão, equanimidade."

Como se verifica, as diversas acepções gramaticais do termo já seriam suficientes para demonstrar a enorme complexidade da discussão acerca da equidade, notadamente se encarada sob uma ótica leiga.
Entretanto, como se não bastasse, diversas controvérsias surgem quando da utilização jurídica do termo, seja no campo das relações de direito material, seja no âmbito da apreciação de lides pelo poder judiciário.
Veremos, portanto, cada um destes problemas separadamente de modo a buscarmos uma visão sistemática do que seja equidade, notadamente no Direito do Trabalho, que é o objeto de nosso estudo.
Antes, porém, faz-se mister dissertar sobre alguns temas de Filosofia e Teoria Geral do Direito para que nossas conclusões não sejam precipitadas, nem levianas.

2. Considerações acerca do conceito jurídico de eqüidade:

A tarefa de conceituar um instituto jurídico é sempre da mais árduas, tendo em vista a enorme gama de peculiaridades que o envolve normalmente.
Desta forma, preferimos nos socorrer de grandes mestres da filosofia e do direito de forma a obtermos um maior cabedal de conhecimentos para o desenvolvimento da matéria.
A noção original de eqüidade surge na Grécia antiga, com Aristóteles, na "Ética a Nicômaco", na qual afirmava que "o eqüitativo, embora seja melhor que uma simples espécie de justiça, é em si mesmo justo, e não é por ser especificamente diferente da justiça que ele é melhor do que o justo. A justiça e a eqüidade são portanto a mesma coisa, embora a eqüidade seja melhor. O que cria o problema é o fato de o eqüitativo ser justo, mas não o justo segundo a lei, e sim um corretivo da justiça legal. A razão é que toda lei é de ordem geral, mas não é possível fazer uma afirmação universal que seja correta em relação a certos casos particulares. Nestes casos, então, em que é necessário estabelecer regras gerais, mas não é possível fazê-lo completamente, a lei leva em consideração a maioria dos casos, embora não ignore a possibilidade de falha decorrente desta circunstância. E nem por isto a lei é menos correta, pois a falha não é da lei nem do legislador, e sim da natureza do caso particular, pois a natureza da conduta é essencialmente irregular. Quando a lei estabelece uma regra geral, e aparece em sua aplicação um caso não previsto por esta regra, então é correto, onde o legislador é omisso e falhou por excesso de simplificação, suprir a omissão, dizendo o que o próprio legislador diria se estivesse presente, e o que teria incluído em sua lei se houvesse previsto o caso em questão. Por isso o eqüitativo é justo, e melhor que uma simples espécie de justiça, embora não seja melhor que a justiça irrestrita (mas é melhor que o erro oriundo da natureza irrestrita de seus ditames). Então o eqüitativo é, por sua natureza, uma correção da lei onde esta é omissa devido à sua generalidade. De fato, a lei não prevê todas as situações porque é impossível estabelecer uma lei a propósito de algumas delas, de tal forma que às vezes se torna necessário recorrer a um decreto. Com efeito, quando uma situação é indefinida a regra também tem de ser indefinida, como acontece com a régua de chumbo usada pelos construtores em Lesbos; a régua se adapta à forma da pedra e não é rígida, e o decreto se adapta aos fatos de maneira idêntica" .
Conforme ressalta Wagner D. Giglio, comentando trechos da "Ética a Nicômaco", em brilhante artigo sobre a equidade: "Nota-se a preocupação do preceptor de Alexandre em equacionar as relações entre o Direito e a Justiça, entre o legal e o ético, colocando a eqüidade no plano ideal de uma justiça intuitiva, natural e humana, superior e mais perfeita do que a norma jurídica. A eqüidade corresponderia o justo aperfeiçoado, à Justiça ideal, e sua missão seria suprir as omissões da lei e orientar o intérprete na correção das injustiças."
Na doutrina moderna, diversos autores tratam desta questão, sendo a eqüidade tida como "princípio geral do Direito, o mais geral de todos" (...), "ponte por excelência entre a Justiça e a Lei" (...) e "fonte de standards jurídicos" por José Martins Catharino ; "a justiça do juiz, em contraposição à lei, justiça do legislador", por Carnelutti, citado por Délio Maranhão ; como "al sentimento di giustizia della generalitá dei cittadini nel tempo e nel luogo in cui avviene la decisione", por Luigi De Litala ; como "a idéia do justo" que "abranda o rigor do texto" e "aquece a frieza da lei", pelo Ministro Mozart Victor Russomano ; como "la justicia del caso concreto" que "sirve para corrigir a la justicia", adaptando-a, não sendo "un princípio ni una fórmula general derivada de la idea de justicia, sino un procedimiento y un resultado: Es la armonia entre lo general y lo particular", por Mário De La Cueva ; e como correspondente "ao sentimento de justiça que deve influenciar o legislador na elaboração da lei e o juiz na sua interpretação", por Arnaldo Lopes Sussekind , entre outros ilustres juristas.
Saliente-se, porém, que estes conceitos variam de acordo com a posição de cada doutrinador acerca do problema das funções da eqüidade no Direito.
Mas que funções são estas?
É o que veremos no decorrer do presente estudo.

3. O problema das lacunas do direito:

Um aspecto extremamente relevante antes da enunciação das funções da equidade é a discussão acerca da problemática da existência ou não das lacunas no Direito.
De maneira didática e, por isto mesmo, sintética, podemos classificar as teorias acerca desta problemática em duas correntes básicas: a) os que defendem a inexistência de lacunas no ordenamento jurídico, por considerarem-no uma plenitude hermética; e b) os que defendem a concepção do ordenamento jurídico como um sistema aberto e incompleto;
Vejamos cada uma destas correntes separadamente, de modo a possibilitar uma descrição imparcial do problema, bem como as funções da equidade em cada uma das posições doutrinárias:

3.1. Corrente da plenitude hermética do Direito:

Esta corrente, cujos maiores expoentes são Hans Kelsen e Carlos Cossio, nega a existência de lacunas no sistema jurídico, colocando a sua completude como uma exigência lógica de um ideal racional.
É de se ressaltar, porém, que ambos os jusfilósofos, apesar de desenvolverem seu raciocínio de maneira distinta, acabam se baseando num princípio ontológico do direito, enunciado expressamente pelo pensador argentino que consiste na constatação de que "tudo que não está juridicamente proibido, está juridicamente facultado".
Encarado neste sentido, o sistema jurídico não poderia admitir a existência de lacunas, eis que o mesmo seria uno, pleno e harmônico, pelo que toda controvérsia teria necessariamente uma solução.
Para Hans Kelsen, a questão das lacunas se constituiria num problema de jurisdição, ou seja, que o Estado-Juiz resolveria simplesmente através dos seus órgãos competentes.
Sendo assim, apesar de não admitir a existência de "lacunas" no sistema jurídico, Kelsen, conforme ensina Maria Helena Diniz, "reconhece a importância da teoria das lacunas no âmbito da jurisdição, como um limite ao poder normativo do magistrado. Considerando a 'lacuna' como uma ficção utilizada pelo legislador com a finalidade de restringir o poder de interpretação e de integração conferido aos tribunais, quando estes constatam a falta de uma determinada norma, na ordem jurídica, para resolver certo caso, 'falta essa determinada com base num juízo de valor ético-político subjetivo, que é apresentada como impossibilidade lógica da aplicação dessa ordem jurídica'.
A doutrina tradicional, nos casos não previstos, reconhece que o juiz pode decidi-los, segundo sua livre apreciação, quando entender que a aplicação da ordem jurídica vigente, conforme sua concepção ético-política, é insatisfatória no caso sub judice. Foi, portanto, para não aceitar a competência legislativa dos juízes e tribunais, que se construiu a ficção da existência de 'lacunas', substituindo-se assim a razão ético-política subjetiva (a aplicação da norma geral estabelecida pelo legislador levaria a conseqüências insatisfatórias) pela razão lógico-objetiva (o direito possui lacunas, ou seja, há casos não previstos em normas gerais).
Para Kelsen, portanto, 'a existência de uma lacuna só é presumida quando a ausência de uma norma jurídica é considerada pelo órgão aplicador do direito como indesejável do ponto de vista da política jurídica e, por isso, a aplicação - logicamente possível - do direito vigente é afetada por esta razão político-jurídica, por ser considerada pelo órgão aplicador do direito como não eqüitativa ou desacertada. Porém, a aplicação da ordem jurídica vigente pode ser havida como não eqüitativa ou desacertada, não apenas quando esta não contenha uma norma geral que imponha ao demandado ou acusado uma determinada obrigação, mas também quando ela contenha uma tal norma. O fato (anterior à reforma de 1984) da ordem jurídica não conter qualquer norma que estabeleça pena para o furto de energia elétrica pode ser considerado tão iníquo ou desacertado como o fato de uma ordem jurídica conter norma que é de aplicar tanto ao roubo acompanhado de homicídio como à hipótese de um filho matar o pai que sofre de doença incurável, a pedido deste. Lacuna, no sentido de inaplicabilidade lógica do direito vigente, tampouco existe num caso como no outro'. Deveras, considerar o furto de energia elétrica, não previsto em lei, como um comportamento juridicamente permitido, é uma iniqüidade. Por isso, entender as lacunas como uma 'ficção' permite ao juiz não aplicar tal norma, que conduziria a resultados injustos. Daí a importância do nosso art. 4º da Lei de Introdução ao Código Civil, que, na doutrina kelseniana, funcionaria como um controle ao poder do magistrado. Convém repetir: o legislador 'recorre à ficção de que a ordem jurídica vigente, em certos casos, não pode ser aplicada - não por uma razão ético-política subjetiva, mas por uma razão lógico-objetiva - de que o juiz somente pode fazer de legislador quando o direito apresentar uma lacuna', tendendo, com isso, a limitar a hipertrofia da função judicial.
Admitindo, assim, a existência de lacunas axiológicas ou políticas, no caso de um comportamento proibido pelo sistema, mas desejável, por razões de política jurídica, pelo juiz que passará a aceitá-lo, propondo uma outra norma que o tornasse permitido; ou na hipótese de uma conduta regulada negativamente, sendo permitida, mas que, por razões políticas, o magistrado julgue que deva ser regulado de modo positivo" .
Quanto à Carlos Cossio, por entender que o Direito não é a norma, mas sim a conduta humana em sua interferência intersubjetiva relacionada a valores, não haveria que se falar em lacunas ontológicas no sistema jurídico, eis que o mesmo consistiria num "contínuo de licitudes e descontínuo de ilicitudes", estando toda conduta humana regulada pelo Direito, pelo que o exato entendimento da interpretação jurídica não é o da análise da norma, mas sim da conduta (esta sim seu objeto de estudo, através da norma ou mediante a norma).
Desta forma, enunciando o princípio ontológico já adredemente apontado (tudo que não está juridicamente proibido, está juridicamente permitido), Cossio acredita resolver o problema lógico da plenitude hermética da ordem jurídica, eis que a própria conduta do juiz é direito, haja vista estar também normada.
Lembrando, novamente, Maria Helena Diniz, a "lacuna da lei, para a Egologia, é atinente à interpretação, pretendendo evitar que a lei se projete no domínio do absurdo, enquanto a lacuna do direito refere-se a uma solução injusta, como a regulamentação da propriedade segundo o Código de Napoleão, chamada a reger o problema da eletricidade. Carlos Cossio não admite a coexistência de duas plenitudes; apenas existem problemas estimativos que se apresentam, não como dois elementos distintos, mas independentes" .
Os partidários de tal corrente, portanto, descartam somente a existência de lacunas ontológicas, aceitando, porém, a possibilidade de lacunas axiológicas, pois há hipóteses em que o modo como alguma relação está regulada pode ser tal que, à maneira como atualmente a comunidade está vivenciando os valores jurídicos, esse modo de regular possa parecer injusto (o que é, evidentemente, uma questão de valor).
Neste aspecto, vale a pena transcrever as lições de Antônio Luís Machado Neto, um dos maiores estudiosos brasileiros do Egologismo, para quem "há casos em que a lei proporciona ao juiz apenas um critério ou orientação geral, tais os critérios de boa-fé, bons costumes, atentado ao pudor, etc., em que o julgador terá de completar o sentido da norma através do preenchimento do contéudo concreto que a comunidade, atualmente, atribui a tais conceitos genéricos.
Outros casos há, que, embora possam estar incluídos no conceito geral de lacunas axiológicas, têm caráter especial. Tais são, por exemplo, quando a norma é omissa, seja porque o problema, ao sobrevir a lei, não estava bastante amadurecido, seja porque a solução não foi prevista, seja porque a questão não foi praticamente suscitada até a superveniência da norma.
Um caso análogo é quando a norma existente manifesta-se inaplicável por abranger casos ou conseqüências que o legislador não teria contemplado se uma coisa ou outra houvesse conhecido. Lacunas axiológicas, mais uma vez; pois, não há negar, que logicamente a matéria estava regulada, embora dessa forma insuficiente e vivenciada como injusta."
Nestes casos, caracterizados pelos defensores desta corrente como lacunas axiológicas, caberia ao intérprete e, especialmente, ao julgador, a tarefa de integrar a norma, integração esta que se daria, principalmente, pela analogia, mas também pelos princípios gerais do direito e pela eqüidade;

3.2. Corrente da incompletude aberta do Direito:

A outra corrente, que defende a existência de lacunas no ordenamento jurídico, cujo maior expoente brasileiro é o Prof. Miguel Reale, revela o direito como uma realidade complexa, contendo diversas dimensões, não somente normativas, mas também fáticas e axiológicas, surgindo um critério de avaliação em que "os fatos e as situações jurídicas devem ser entendidos como um entrelaçamento entre a realidade viva e as significações do direito, no sentido de que ambas se prendem uma a outra" .
Este posicionamento nega o princípio ontológico do Direito ("Tudo que não está juridicamente proibido, está juridicamente permitido), proposto por Carlos Cossio, porque, segundo o entendimento da Professora Maria Helena Diniz, "esse princípio não constitui uma norma jurídico-positiva, não conferindo, portanto, direitos e obrigações a ninguém, sendo, assim, um mero enunciado lógico, inferido da análise do sistema normativo. Considerado sob o prisma da linguagem, seria uma metalinguagem, porquanto se dirige à linguagem-objeto, sendo, nesse sentido, uma proposição descritiva, formal ou lógica, isto é, analítica, posto que não se refere ao mundo fático." Desta forma, conclui a ilustre jurista, isto "vem a comprovar, uma vez mais, a falta de normatividade do referido dogma. Com isso, essas teorias fracassam no empenho de sustentar que todo o sistema jurídico é uno, completo, independente e sem lacunas, pois concebem o direito sob uma perspectiva estática" .
Sob esta ótica, o sistema normativo é dinâmico e aberto, havendo, portanto, possibilidades para a existência das lacunas, pois é impossível para o legislador prever todas as hipóteses fáticas de aplicabilidade da norma, não havendo solução expressa neste caso.
Diante deste posicionamento, cabe ao intérprete da norma suprir este "vazio normativo", valendo-se de regras de interpretação, integração e aplicação das normas, socorrendo-se de meios supletivos, a saber, a analogia, o costume, os princípios gerais de direito e, o que nos interessa, a eqüidade.
Sem tomar uma posição definitiva acerca do acertamento de um ou outro posicionamento, vale a pena ressaltar que a equidade, em ambas as correntes descritas, tem, portanto, uma função bastante importante no estudo da hermenêutica jurídica (aplicação, interpretação e integração das normas), como veremos no próximo ponto:

4. A equidade na hermenêutica jurídica (aplicação, interpretação e integração das normas):

Como já vimos no tópico anterior, a hermenêutica jurídica implica em diversas regras de interpretação, integração e aplicação das normas, em que são utilizados, como meios supletivos, a analogia, o costume, os princípios gerais de direito e a eqüidade
Por não se tratarem de objeto do presente estudo, não abordaremos os demais meios supletivos, limitando-nos à discussão e análise acerca da eqüidade.
Voltando ao que foi exposto no primeiro tópico deste estudo, vemos que a eqüidade pode ser definida como "igualdade, retidão, equanimidade", ou seja, a eqüidade, no seu sentido original, equivale à própria noção de justiça, vale dizer, o ideal a ser atingido tanto pelo legislador, quanto pela aplicador da norma, pois não há como se conceber, do ponto de vista lógico, um direito injusto.
Desta forma, a eqüidade não é somente um simples método ou técnica de interpretação, mas sim um pressuposto lógico da atividade interpretativa, haja vista que, se a finalidade do Direito é a realização concreta da Justiça, toda interpretação de suas normas deve respeitar esse fundamento teleológico (isto é, ser eqüitativa, tender para o justo).
Lembrando, novamente, o primoroso artigo de Wagner D. Giglio, "não é livre o julgador para, fazendo abstração de métodos e técnicas, descumprindo preceitos legais que os impõem, interpretar normas jurídicas por eqüidade, baseado exclusivamente em sua noção intuitiva e subjetiva do que seja justo; deve, isto sim, pautar sua pesquisa naqueles métodos e técnicas para apreender, dentro da mais rigorosa lógica jurídica, a finalidade do preceito legal, a sua razão de ser precípua, o seu objetivo último, ou seja, interpretá-lo a partir do pressuposto fundamental de que toda a norma jurídica tende à justa composição das relações sociais. A isto chamamos, por amor à síntese, interpretar com eqüidade."
Em outras palavras, devemos ter em mente que há uma distinção básica entre o que seja decidir por eqüidade e decidir com eqüidade: no primeiro caso, o julgador está livre de quaisquer "amarras técnicas" para decidir o caso apresentado para sua apreciação, enquanto, no segundo caso, trata-se de uma característica de todo o julgador que se propõe a decidir com justiça (conceito subjetivo - é verdade - porém, universal).
Mas - pergunta um leitor mais crítico - isto não seria apenas um mero jogo de palavras, sem nenhuma aplicabilidade prática?
De modo algum - respondemos - e provaremos isto analisando, separadamente, hipóteses legais concretas de decisão somente por eqüidade, como veremos a seguir:

4.1. Hipóteses legais de decisão por eqüidade:

Existem, no vigente ordenamento jurídico brasileiro, diversas hipóteses legais de decisão por eqüidade.
Entre elas, podemos elencar, por exemplo, a previsão do art. 20 do Código de Processo Civil, no que diz respeito à fixação de honorários nas causas de pequeno valor, nas de valor inestimável, nas em que não houver condenação ou em qeu for vencida a Fazenda Pública, e nas execuções, embargadas ou não, em que se delega ao prudente arbítrio do julgador a estipulação do quantum debeatur.
Outra hipótese é a constante do art. 1.075, IV, que prevê expressamente, quando da estipulação de um juízo arbitral, que o compromisso poderá conter "a autorização aos árbitros para julgarem por eqüidade, fora das regras e formas de direito".
Clarríssima, ainda, é a hipótese do art. 1.109, que diz, que nos procedimentos de jurisdição voluntária, o "juiz decidirá o pedido no prazo de 10 (dez) dias; não é. porém, obrigado a observar critério de legalidade estrita, podendo adotar em cada caso a solução que reputar mais conveniente ou oportuna." (grifos nossos)
Em todos estes casos, é facultado expressamente que o julgador pode valer-se de seus próprios critérios de justiça, quando vai decidir, não estando adstrito às regras ou métodos de interpretação pré-estabelecidos.
Podemos, inclusive, afirmar que, nesta oportunidade, o julgador deixa de ser juiz - aplicador de regras estatais rígidas - para ser árbitro (que é diferente de arbitrário - ressalte-se), vinculado somente à sua consciência e percepção da justiça, naquele caso concreto, segundo sua própria racionalização do problema.
Conforme ensina Tércio Sampaio Ferraz, o "juízo por eqüidade, na falta de norma positiva, é o recurso a uma espécie de intuição, no concreto, das exigências da justiça enquanto igualdade proporcional. O intérprete deve, porém, sempre buscar uma racionalização desta intuição, mediante uma análise das considerações práticas dos efeitos presumíveis das soluções encontradas, o que exige juízos empíricos e de valor, os quais aparecem fundidos na expressão juízo por eqüidade."
Reconhecidos tais exemplos como de juízo por equidade, vejamos, agora, a questão da utilização da equidade como meio supletivo para suprir eventuais lacunas do Direito:

4.2. A eqüidade como meio supletivo de interpretação e integração das normas:

Conforme ensina Luís Recaséns Siches, "El problema de la equidad no es propiamente el de "corregir la ley" al aplicarla a determinados casos particulares. Nos se trata de "corregir la ley". Se trata de otra cosa: se trata de "interpretarla razonablemente" (...) "Es un dislate enorme pensar em la posibilidad de una interpretación literal. Uno puede comprender que a algunos legisladores, imbuidos por una embriaguez de poder, se les haya ocurrido ordenar tal interpretación. Lo cual, por otra parte, resulta por completo irrelevante, carece de toda consecuencia jurídica, porque el legislador, por absolutos que sean los poderes que se le hayan conferido, no puede en ningún caso definir sobre el método de interpretación de sus mandatos. El legislador podrá ordenar la conducta que considere justa, conveniente y oportuna, mediante normas generales. A esto es lo que se pueden extender sus poderes. Em cambio, esencial y necessariamente está fuera de su poder el definir y regular algo que no cabe jamás incluir dentro del concepto de legislación: el regular el método de interpretación de las normas generales que él emite. Pero, en fin, a veces, los legisladores, embriagados de petulancia, sueñan en lo imposible. La cosa no tiene, no debiera tener practicamente ninguna importancia, porque se trata de um ensueño, sin sentido, al que ningún juez sensato puede ocurrirsele prestar atención. (...) Ahora bien, es sabido que las palabras cobran sua auténtico sentido solo dentro de dos contextos: dentro del contexto de la frase, pero sobre todo dentro del contexto real al que la frase se refire, es decir con referencia a la situación y a la intencionalidad mentadas em la frase"
Floriano Correa Vaz da Silva, em elucidativo trabalho específico sobre a equidade, busca sintetizar o pensamento de Recaséns Siches da seguinte maneira: "equidade não é apenas um dos meios de interpretação, mas sim o meio de interpretação, aquele que engloba e sintetiza e permeia todos os meios de interpretação, aquele que constitui - ou deve constituir - o único meio de interpretação, não apenas do direito do trabalho, mas de todos os ramos do direito, de todo o direito." (...) "Recaséns Siches entende que, mesmo sendo a lógica tradicional um instrumento indispensável para criar a norma individualizada da sentença do Direito, não é a mesma suficiente ao trabalho do jurista. Para compreender e interpretar de modo justo o conteúdo das disposições jurídicas, para criar a norma individualizada da sentença judicial ou da decisão administrativa, para elaborar as leis, para interpretar as leis em relação com os casos concretos e singulares, é necessário exercitar "el logos de lo humano, la lógica de lo razonable y de la razón vital e histórica
Desta forma, podemos entender que a eqüidade significa, para o brilhante jusfilósofo espanhol, radicado no México, a busca da interpretação mais razoável da norma para o caso em apreciação.
Baseado neste raciocínio, podemos afirmar que, quando o jurista se defronta com uma lacuna do direito, seja ela axiológica (para os que defendem a plenitude hermética do sistema jurídica), seja ela ontológica (para os que professam o direito como um sistema aberto e dinâmico), deve a mesma ser suprida através dum processo de integração da norma, que pode se dar, como já vimos, pela utilização, como meios supletivos, da analogia, do costume, dos princípios gerais de direito e, finalmente, da eqüidade.
Conforme ensina a Professora Maria Helena Diniz, pela "eqüidade ponderam-se, compreendem-se e estimam-se os resultados práticos que a aplicação da norma produziria em determinadas situações fáticas. Se o resultado prático concorda com as valorações que inspiram a norma, em que se funda, tal norma deverá ser aplicada. Se, ao contrário, a norma aplicável a um caso singular produzir efeitos que viriam a contradizer as valorações, conforme as quais se modela a ordem jurídica, então, indubitavelmente, tal norma não deve ser aplicada a esse caso concreto. (...) A eqüidade seria uma válvula de segurança que possibilita aliviar a tensão e antinomia entre a norma e a realidade, a revolta dos fatos contra os códigos."
Desta forma, quando houver a contradição entre a norma posta expressamente e a realidade, gerando uma lacuna ou antinomia, pode a eqüidade ser utilizada de forma a encontrar o equilíbrio entre a norma, o fato e o valor, aplicando o direito ao caso concreto.
Não se trata, entretanto, de se (re)inventar o direito, mas sim de adequar a norma - a letra fria da lei - à realidade regulada, de acordo com os valores da sociedade e as regras e métodos de interpretação.
Após esta exposição, e visando esclarecer eventuais dúvidas, podemos classificar, segundo nosso posicionamento e dos ilustres juristas mencionados, as decisões que se valem da eqüidade de 03 (três) formas distintas:

a) Decisão com eqüidade: é toda decisão que se pretende estar de acordo com o direito, enquanto ideal supremo de justiça;
b) Decisão por eqüidade: é toda decisão que tem por base a consciência e percepção de justiça do julgador, que não precisa estar preso a regras de direito positivo e métodos pré-estabelecidos de interpretação;
c) Decisão utilizando-se a eqüidade como meio supletivo de integração e interpretação de normas: é toda decisão proferida no sentido de encontrar o equilíbrio entre norma, fato e valor (aplicação do direito ao caso concreto), na hipótese de constatação de uma contradição entre a norma posta e a realidade, gerando uma lacuna;

5. Análise do art. 127 do Código de Processo Civil:

Dispõe o art. 127 do Código de Processo Civil, in verbis:

"Art. 127. O juiz só decidirá por eqüidade nos casos previstos em lei." (grifos nossos)

A Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro (Decreto-Lei nº 4.657/42), por sua vez, em seu art. 4º, enuncia:

"Art. 4º. Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito."

Por causa destes dispositivos normativos, há forte corrente, na qual militam diversos ilustres juristas, que entende que o juiz somente pode aplicar a eqüidade em determinadas hipóteses taxativamente expressas.
Deste entendimento, definitivamente, não partilhamos.
Com efeito, acreditamos que a regra do digesto processual civil somente se aplica ao que chamamos "decisão por eqüidade", a que nos referimos nos tópicos anteriores.
Entretanto, a regra geral de que o juiz deve decidir sempre com eqüidade, ou seja, visando realizar a Justiça, deve permanecer dentro de um sistema jurídico que se propõe lógico, pois uma decisão jurídica (enquanto busca de realização da Justiça) que afronta o direito (enquanto ideal de justiça) é um contradição de termos.
Do mesmo modo, não há como se desprezar a eqüidade como meio de integração da norma, adequando-a ao caso concreto, na hipótese de haver lacunas no ordenamento jurídico (axiológicas ou não), eis que o art. 5º da mesma Lei de Introdução ao Código Civil afirma que na "aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum."
Desta forma, é a eqüidade perfeitamente aplicável no sistema processual brasileiro vigente, em qualquer uma das 03 (três) classificações expostas ao final do tópico 4.2.
Tal constatação se consolida, ainda mais, quando nos referimos ao direito do trabalho brasileiro, eis que o próprio texto da C.L.T. prevê a aplicabilidade da eqüidade, conforme se verifica de uma simples leitura do seu art. 8º:

"Art. 8º. As autoridades administrativas e a Justiça do Trabalho, na falta de disposições legais ou contratuais, decidirão, conforme o caso, pela jurisprudência, por analogia, por eqüidade e outros princípios e normas gerais de direito, principalmente do direito do trabalho, e, ainda, de acordo com os usos e costumes, o direito comparado, mas sempre de maneira que nenhum interesse de classe ou particular prevaleça sobre o interesse público.
Parágrafo único. O direito comum será fonte subsidiária do direito do trabalho, naquilo em que não for incompatível com os princípios fundamentais deste."

Sendo assim, por expressa determinação legal, é perfeitamente aplicável a eqüidade no direito do trabalho, tanto pela aplicação direta (art. 8º), como subsidiária (parágrafo único).
Neste sentido, conforme lembra Miguel Reale, o Direito do Trabalho "é, por sua natureza, um Direito a que é inerente um 'sentido dinâmico', de contínua adequação às estruturas sociais em mudança, sempre visando a garantir aos protagonistas do trabalho a plenitude de seu ser pessoal, numa permanente conciliação entre valores individuais e grupalistas.
Bastaria esta nota de 'dinamicidade social', a que se referem tantos autores, ao procurarem caracterizar o 'espírito do Direito do Trabalho', para desde logo se ter de reconhecer que o papel desempenhado pela eqüidade nos domínios da Jurisprudência, em geral, se revela ainda mais significativo na tela da Hermenêutica trabalhista, cujas relações implicam sempre um 'ser situado num quadro de peculiares circunstâncias', como é o caso do trabalhador ou do empresário.
Natural, por conseguinte, que o operador do Direito do Trabalho, tendo de aplicar a situações concretas uma regra abstrata, pertinente a uma 'classe de atos ou de fatos', procure obedecer a critérios equitativos para a atualização da lei, não para contrariá-la, mas antes para realizá-la em sua plenitude e concreção, segundo a raiz de seu ditame, e não segundo os elementos formais que a ocultam ou a enrijecem" (grifos nossos)
Entretanto, apesar de parecer óbvio que as decisões com eqüidade são plenamente cabíveis no direito do trabalho, haja vista que não se trata de uma questão dum ramo específico da árvore jurídica, mas sim da própria Teoria Geral do Direito, há quem encontre dificuldade em visualizar decisões por equidade ou decisões tomando a eqüidade como meio supletivo no direito do trabalho.
Para dissipar quaisquer dúvidas neste sentido, apresentaremos, nos próximos tópicos, alguns exemplos destes tipos de decisão no processos trabalhistas:

6. Exemplo de decisão por eqüidade no Direito do Trabalho brasileiro:

O julgamento por eqüidade é algo extremamente presente no cotidiano da Justiça Especializada Trabalhista.
Um dos exemplos clássicos deste tipo de julgamento é a decisão proferida nos dissídios coletivos, em que os tribunais trabalhistas, através de sua composição plena ou de órgãos especializados, elaboram as normas que irão regular aquela determinada categoria profissional.
Comentando a matéria em sua clássica obra "Curso de Direito do Trabalho", Orlando Gomes e Elson Gottschalk ensinam que, neste caso, "o juiz deve julgar segundo a eqüidade, conciliando os interesses dos empregados com os dos empregadores, subordinando-os, sempre, aos interesses gerais da coletividade."
Como se vê, os julgadores, no conflito coletivo, devem estar atentos principalmente aos interesses gerais da coletividade, termo este que é, em verdade, o que se convencionou chamar de "topoi", que, segundo a conceitação de Tércio Sampaio Ferraz Jr., constitui-se em "fórmulas, variáveis no tempo e no espaço, de reconhecida força persuasiva, e que usamos, com frequência, mesmo nas argumentações não técnicas das discussões cotidianas" . Em outras palavras, trata-se de um conceito indeterminado, de alta reflexão, que exige uma interpretação do órgão julgador, o que acaba levando-o a recorrer ao que considera justo no caso concreto.

7. Exemplo de lacunas no Direito do Trabalho brasileiro: decisões tomando a eqüidade como meio supletivo:

Reconhecida a existência de lacunas (axiológicas ou não) no ordenamento jurídico, tal fenômeno não poderia deixar de ocorrer no Direito do Trabalho, eis que o mesmo é um dos ramos da imensa e complexa árvore jurídica.
Exemplificar, porém, uma hipótese de lacuna no Direito é sempre algo complicado, pois envolve, necessariamente, a interpretação vigente de determinada norma, que, muitas vezes, não corresponde à interpretação que é data pelo interlocutor.
Apesar destas dificuldades, não nos furtaremos a propor uma hipótese, a qual, desde já, reconhecemos como polêmica, justamente por envolver discussões acerca do método interpretativo adequado.
Tomemos, por exemplo, a norma contida no art. 7º, XIII, da Constituição Federal de 1988, que preceitua, in verbis:

"Art. 7º. São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social:
(...)
XIII - duração do trabalho normal não superior a oito horas diárias e quarenta e quatro semanais, facultada a compensação de horários e a redução da jornada, mediante acordo ou convenção coletiva de trabalho;"

O entendimento predominante na instância superior trabalhista é que o acordo a que se refere a previsão constitucional é o acordo coletivo, por uma interpretação sistemática do texto constitucional e - por que não dizer - do próprio espírito do legislador constituinte, que buscou "flexibilizar" alguns direitos trabalhistas, mediante uma visão privilegiadora da autonomia da vontade coletiva.
Apesar de reconhecermos a existência de ilustres vozes discordantes, acreditamos que a convicção do Tribunal Superior do Trabalho, através da sua Seção Especializada em Dissídios Individuais, é a mais acertada, não só pelas interpretações literal e sistemática do texto constitucional, mas também pelo próprio sentido histórico e princípio básico do Direito do Trabalho, que é o da proteção ao hipossuficiente econômico.
Fundamenta-se esta última assertiva na constatação fática de que muitos destes alegados "acordos individuais de compensação de jornada" são firmados quando da admissão do empregado que, neste momento, encontra-se em posição de inferioridade, constituindo-se em verdadeiros "contratos de adesão", em que se renuncia a direitos assegurados pela legislação (in casu, a jornada máxima diária de oito horas), sob pena de não obtenção do emprego.
Nota-se, realmente, que há um vício de consentimento neste ato de adesão, decorrente da coação difusa a que está submetido o trabalhador pela necessidade do emprego, que deve inquinar de nulidade tal acordo.
Acreditamos, ainda, que outro não poderia ser o entendimento, pois, conforme lembra Carlos Alberto Gomes Chiarelli, Doutor em Direito e Senador Constituinte, na "medida em que a nova Constituição estabelece no inciso XIII, do artigo 7º., que 'mediante acordo ou convenção coletiva de trabalho' poderá haver redução de jornada e compensação de horários, dentro dos limites que a moldura constitucional fixou, as variações menores, como as do intervalo de repouso não computado para o cálculo da jornada, por sinal, não precisa ficar na dependência do Ministro, nem mesmo do Ministério. Se as partes podem o mais, logicamente podem o menos. Se lhes está assegurado o direito constitucional de reduzir jornada, por entendimento coletivo, e, dentro de tal marco negocial, de abrangência categorial (convenção coletiva) ou de âmbito empresarial (acordo coletivo), também o de efetuar compensações, de molde a dar elasticidade e plasticidade dinâmica à jornada de trabalho, também poderão, com autorização implícita da Lei Maior, ajustar o tempo de duração do intervalo de repouso intermediário. Não há dúvida de que os trabalhadores da empresa, representados pela entidade associativa classista, defenderão com mais especificidade de conhecimento, e, por que não dizer, com maior empenho e entusiasmo, os seus interesses do que qualquer representante governamental. Claro que essa disposição flexibilizadora e autorizativa, reconhecendo poderes, para tanto, dos sindicatos e, patronalmente, também das empresas, não retira o direito de fiscalização, em nome da competência legal e do interesse público do próprio Estado" .
É este o entendimento também de José Augusto Rodrigues Pinto, que ensina que "Em primeiro lugar, a contratualidade das horas extraordinárias foi simplesmente abolida. Somente pela vontade coletiva da categoria é possível pensar nelas, e ainda assim em termos de compensação de jornadas (CF, art. 7º, XIII). Com isso, o constituinte evidenciou seu intuito de fortalecer a atuação sindical, na negociação de um dos pontos críticos das condições de trabalho, além de proteger o empregado, individualmente, subtraindo-o à pressão econômica do empregador para obter, mediante acordo individual de vontades, qualquer forma de prorrogação de horário" .
Apenas para ilustrar, ainda mais, este posicionamento, vale lembrar Amauri Mascaro Nascimento, que declara expressamente que "a forma do sistema de compensação de horas será o acordo coletivo com o sindicato, não valendo, e estando sujeito a autuações da fiscalização trabalhista, o acordo individual", bem como que "para reduzir coletivamente a jornada de trabalho, a empresa terá que fazê-lo também mediante acordos coletivos com o sindicato" e Octávio Bueno Magano, que, em curto artigo, porém com a costumeira precisão, declara que "a Constituição, ao falar em acordo ou convenção coletiva, quis dizer acordo coletivo ou convenção coletiva", pelo que "não se concebe, portanto, de modo algum, compensação de horários ou redução de jornada, mediante acordo individual" .
Entretanto, mesmo tendo em mente estas premissas de raciocínio, podemos propor a seguinte hipótese ideal para discussão:

Determinado jovem executivo, que trabalhava 08 (oito) horas de segunda a sexta e 04 (quatro) horas no sábado, conclui que precisa cuidar melhor de sua saúde e aparência física, resolvendo que deve se dedicar à prática de esportes nos finais de semana.
Então, para isto, pretende deixar de trabalhar nos dias de sexta-feira e sábado, para que possa dispor de mais tempo livre, pelo que celebra um acordo com seu empregador, para trabalhar 11 (onze) horas de segunda a quinta-feira, o que compensaria exatamente as 12 (doze) horas deixadas de trabalhar.
Ressalte-se que tal executivo é um dos empregados mais qualificados da empresa empregadora, sendo "objeto de cobiça", inclusive, de diversos "headhunters".
Pela sua grande importância para os quadros da empresa, esta aceita o acordo, e esta situação permanece por cerca de 05 (cinco) anos.
Contudo, depois deste lapso temporal, há um desentendimento do executivo com a empresa, o que culmina com sua saída.
Irado pela perda de sua posição privilegiada, este executivo decide, então, ajuizar reclamação trabalhista, alegando que o acordo era nulo de pleno direito, por vício de forma, requerendo o pagamento, como extras, de todas as horas excedentes à oitava diária.
QUESTIONA-SE:
Após todos estes posicionamentos, terá o executivo reclamante sucesso em sua aventura judicial?

De acordo com tudo quanto foi exposto, absolutamente não!!!
Tendo sido todos os acontecimentos supra relatados apresentados ao órgão julgador trabalhista, não pode o mesmo abstrair os fatos e valores ali existentes para se limitar à aplicação da letra fria da lei, sob pena de não se fazer justiça no caso concreto.
Então o que pode fazer o julgador?
A resposta é óbvia: suprir esta lacuna com a aplicação da eqüidade.
Mas como?
Há no Direito o princípio, oriundo de um velho brocardo romano, de que "ninguém será ouvido (em juízo) quando alega a sua própria torpeza" (Nemo auditur propriam turpitudinem allegans), pelo que o privilégio da boa fé é uma das "bússolas", que deve orientar o aplicador do direito.
Ora, na presente hipótese, tal acordo, alegado como nulo, foi proposto pelo próprio empregado, numa busca por melhores condições de vida e saúde.
Ademais, não se pode olvidar que não se trata propriamente de um hipossuficiente econômico, eis que tais profissionais tem remuneração anual maior do que a recebido por um trabalhador médio, durante toda sua vida, pelo que não há como se pensar num vício de consentimento, notadamente pelo fato de se tratar de um cidadão de nível superior, extremamente qualificado e polivalente.
Desta forma, o julgador, valendo-se da eqüidade no preenchimento desta lacuna apontada, possibilita a adeqüação da norma aos fatos e valores referentes, eis que a evolução social do próprio Direito do Trabalho impõe novos problemas carentes de soluções.
Com isso, podemos afirmar, inclusive, que a eqüidade, como meio supletivo de interpretação e integração de normas, exerce um papel importantíssimo na reprivatização da autonomia da vontade, em virtude das transformações por que passa o juslaboralismo.

8. Conclusões e Advertência:

Após todas estas digressões, podemos, para fins didáticos, extrair as seguintes conclusões:

1) Existem 03 (três) formas básicas de decisões que se valem da eqüidade, no vigente ordenamento jurídico brasileiro:
a) Decisão com eqüidade: é toda decisão que se pretende estar de acordo com o direito, enquanto ideal supremo de justiça;
b) Decisão por eqüidade: é toda decisão que tem por base a consciência e percepção de justiça do julgador, que não precisa estar preso a regras de direito positivo e métodos pré-estabelecidos de interpretação;
c) Decisão utilizando-se a eqüidade como meio supletivo de integração e interpretação de normas: é toda decisão proferida no sentido de encontrar o equilíbrio entre norma, fato e valor (aplicação do direito ao caso concreto), na hipótese de constatação de uma contradição entre a norma posta e a realidade, gerando uma lacuna;
2) A eqüidade, inclusive por determinação expressa do art. 8º da C.L.T., é perfeitamente aplicável ao Direito do Trabalho, como ramo autônomo do ordenamento jurídico;
3) A eqüidade, como meio supletivo de integração e interpretação de normas, constitui-se em um elemento importante na reprivatização da autonomia da vontade, em virtude das transformações por que passa o Direito do Trabalho;

Entretanto, não se pode deixar de fazer uma advertência:
A eqüidade, neste último sentido, não é um instrumento que se possa utilizar de maneira irresponsável somente para negar aplicabilidade à lei, sem a construção de uma interpretação jurídica coerente, pelo que encerramos este estudo, lembrando o saudoso Délio Maranhão:
"Levar o juiz em conta, na aplicação da lei, as circunstâncias do caso concreto, ajustar a lei à espécie, aplicá-la humanamente, decidir, enfim, com eqüidade, dentro dos limites da norma, é função legítima do julgador. O que lhe não será possível é negar aplicação à lei, por considerá-la injusta. Como adverte De Page, não se deve refazer o direito sob pretexto de eqüidade. Esta, infelizmente, a tendência demasiado frequente de certos juristas que, na verdade, ignoram o direito e pretendem remediar essa ignorância recorrendo à equidade... A eqüidade deve ser uma ambiência, uma atmosfera. Não é um fim em si mesma, mas um meio. Deve ser manejada por mãos de artista, por juristas que conheçam o direito "tout court", e não por aqueles que o ignorem e tentem suprir suas próprias deficiências por uma eqüidade que não é, em realidade, senão uma concepção primária."

9. Bibliografia Consultada:

ARISTÓTELES, "Ética a Nicômaco", in Coleção Os Pensadores, vol. 3, Editora Nova Cultural, São Paulo, 1996;
CATHARINO, José Martins, "Compêndio Universitário de Direito do Trabalho", vol. I, 1ª edição, Editora Jurídica e Universitária Ltda, São Paulo, 1972;
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DE LA CUEVA, Mário, "Derecho Mexicano del Trabajo", 4ª edição, tomo. I, Editorial Porrua S.A., México, 1954;
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