domingo, 10 de abril de 2011

O PRINCÍPIO DA RAZOABILIDADE NA CONSTITUIÇÃO ABERTA

Tercio Roberto Peixoto Souza

INTRODUÇÃO

Partimos do entendimento de que o sistema jurídico do estado de direito brasileiro trata-se de um sistema aberto de regras e princípios, em que as regras, por sua especificidade, tratam o sistema constitucional de forma descritiva e minudente, enquanto os princípios, dado o seu caráter geral, servem como meio de ligação que dão a unicidade necessária ao todo normativo.

Na aplicação dessas normas, sejam princípios ou regras, cabe ao intérprete ter em vista, sempre, a potencialização máxima da ordem constitucional. A partir de tal fato, cumpre-lhe avaliar a carga normativa de cada dispositivo da Constituição, dando-lhe operatividade plena.

No entanto, sendo o Poder Constituinte originário fruto da conjugação de inúmeras forças políticas em um dado momento histórico, é evidente o surgimento de eventuais princípios ou regras de aparente antinomia, dentro do texto normativo constitucional.

Neste processo, diante do caso concreto, cabe ao intérprete avaliar qual o mais importante dos interesses em jogo, fazendo com que, naquela hipótese, uma norma preceda a outra, usando-se do princípio da razoabilidade ou do devido processo legal material (proporcionalidade).

No presente artigo, trataremos da aplicação do princípio da razoabilidade, ou do devido processo legal material, na aplicação dos demais princípios constitucionais consubstanciados na Constituição Federal de 1988.

Algumas críticas são feitas à aplicação exarcebada do princípio da razoabilidade no processo de interpretação do texto constitucional, seja pela dificuldade em ser apurada, de forma objetiva, a correção do posicionamento do aplicador da norma constitucional ao caso concreto; seja pelo risco de instituir-se um governo de juízes, ou mesmo que o sistema normativo passe à mera casuística, sem uma unidade axiológico-normativa.

No caso brasileiro, preocupa ainda mais a questão da aplicação do princípio da razoabilidade, uma vez que, por questões processuais, o Supremo Tribunal Federal, no que pertine ao controle da constitucionalidade suscitada incidentalmente no curso das demandas judiciais, tem se limitado a apurar a suposta violação ao texto constitucional somente em caso em que entende ter havido violação direta ao texto constitucional.

Ocorre que, ordinariamente a aplicação equivocada dos princípios, inclusive quanto à sua valoração, é entendida como violação indireta, ou reflexa, do texto constitucional, fato que impediria ao jurisdicionado o manejo do recurso extraordinário para a corte constitucional, para a chancela, por aquele órgão, da intrepretação dada ao mandamento constitucional ao caso reclamado.

Tal fato determina a coexistência de decisões proferidas em casos semelhantes, de forma absolutamente distintas, que não devem coexistir em um mesmo sistema normativo, sob pena da manifesta incogruência lógico-normativa, incompatível com o Estado de Direito.


DA CONSTITUIÇÃO COMO SISTEMA JURÍDICO ABERTO DE REGRAS E PRINCÍPIOS

O sistema jurídico brasileiro trata-se de um sistema aberto de regras e princípios e como tal deve ser interpretado e aplicado.

Na lição do português J.J. Gomes Canotilho, na descodificação dessa afirmação, um sistema jurídico aberto de regras e princípios:

“(1) é um sistema jurídico porque é um sistema dinâmico de normas; (2) é um sistema aberto porque tem uma estrutura dialógica (Caliess), traduzida na disponibilidade e das normas constitucionais para captarem a mudança da realidade e estarem abertas à concepções cambiantes da e da ; (3) é um sistema normativo, porque a estruturação das expectativas referentes a valores, programas, funções e pessoas é feita através de normas: (4) é um sistema de regras e de princípios pois as normas do sistema tanto podem revelar-se sob a forma de princípios como sob a forma de regras.”

Exatamente esse o enquadramento do sistema jurídico brasileiro. O ordenamento jurídico pátrio apresenta-se como um sistema, ou seja, escalonado e organizado a partir de critérios e regras objetivamente consideradas; permeado de conceitos jurídicos indeterminados, que não tem interpretação unívoca e podem variar com o tempo; fundado na lei, conforme enuncia o artigo 5º, II, da Constituição Federal; formado de regras, normas jurídicas particularizantes, e princípios, normas jurídicas abstratas e indeterminadas.

Por sua vez, Celso Ribeiro Bastos, sobre o tema pontua:

“A Constituição é um sistema normativo aberto, dinâmico. Ela não é, nem pode ser um documento fechado, estático. Se é próprio da vida social estar em constante mutação, o fenômeno jurídico, que pretende fundamentalmente regular a vida em sociedade, não poderia deixar de sofrer alteração. Mesmo quando ele não tenha condições de se antecipar ou propiciar essa evolução, ele não pode deixar de, ao menos, acompanhá-la.”

Para tratarmos do tema da aplicação dos princípios ou regras no ordenamento jurídico constitucional, inicialmente cumpre-nos fixar a definição dos princípios e das regras, uma vez que ambos são espécies do gênero normas.

Para tanto, mais uma vez utilizaremos a definição adotada por Canotilho , que didaticamente propõe:

“Os princípios interessar-nos-ão, aqui, sobretudo na sua qualidade de verdadeiras normas, qualitativamente distintas de outras categorias de normas ou seja, de regras jurídicas. As diferenças qualitativas traduzir-se-ão, fundamentalmente, nos seguintes aspectos. Em primeiro lugar, os princípios são normas jurídicas impositivas de uma optimização, compatíveis com vários graus de concretização, consoante os condicionalismos fáticos e jurídicos; as regras são normas que prescrevem imperativamente uma exigência (impõe, permite ou proíbem) que é ou não cumprida (nos termos de Dwerkin: applicable in al-or-notting fashion); a convivência dos princípios é conflitual (Zagrebeslky), a convivência de regras é antinômica; os princípios coexistem, as regras antinômicas excluem-se. Conseqüentemente, os princípios ao constituem exigências de optimização, permitem o balanceamento de valores e interesses (não obedecem, como as regras, à ), consoante o seu peso e a ponderação de outros princípios eventualmente conflituantes; as regras não deixam espaço para qualquer outra solução, pois se uma regra vale ( tem validade) deve cumprir-se na exacta medida das suas prescrições, nem mais nem menos. Como se verá mais adiante, em caso de conflito entre princípios, estes podem ser objeto de ponderação, de harmonização, pois eles contém, apenas < exigências ou < standards> que, em primeira linha> (prima facie), devem ser realizados; as regras contém definitivas, sendo insustentável a validade simultânea de regras contraditórias. Realça-se também que os princípios suscitam problemas de validade e peso (importância, ponderação, valia); as regras colocam apenas questões de validade (se elas não são correctas devem ser alteradas).”

A partir da distinção ora estabelecida, fica bastante clara a idéia de que o sistema constitucional é brasileiro é um sistema aberto de regras e princípios. Em que pese a preservação do princípio da legalidade, a teor do artigo 5º, inciso II, da Constituição Federal, é certo que o sistema normativo nacional não se limita a uma disciplina exaustiva e completa do fenômeno social, como um sistema exclusivamente de regras. Se assim o fosse, teríamos um sistema absolutamente fechado, de difícil ou quase impossível acompanhamento da realidade social.

Por outro lado, verifica-se também que o nosso ordenamento jurídico não está conformado exclusivamente em princípios, cuja indeterminação, inexistência de regras precisas seria incapaz de assegurar alguma segurança jurídica ao cidadão, como em um sistema exclusivamente aberto.

Evidencia a distinção traçada pelo mestre português, que o sistema aberto implica na adequação entre regras e princípios no qual cabe às primeiras, a regulamentação específica do fenômeno jurídico, enquanto que aos últimos, a função sistêmica, de ligação, de conformação e adequação da norma à realidade social.

Da conjugação entre aquelas hipóteses normativas forma-se do direito constitucional, no dizer de Alexy “um sistema aberto de normas e princípios que, através de processos judiciais, procedimentos legislativos e administrativos, iniciativas dos cidadãos, passa de uma law in the books para uma law in action para uma .”

Ocorre que, no processo de aplicação das normas, justamente por força da função sistêmica e de conformação determinada pelos princípios, o intérprete, ao aplicar o comando legal, deve levar em conta o conteúdo axiológico, o caráter cogente e imperativo dos mesmos.

Nesse sentido ainda, cumpre destacar que, em um sistema normativo, os princípios possuem o papel fundamental de estabelecer os parâmetros tanto para o legislador quanto para o intérprete. Os princípios são, na lição de Celso Antônio Bandeira de Mello o:

“mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência, exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo que lhe confere a tônica e lhe dá sentido harmônico”

Os princípios servem como opções e critérios valorativos, de caráter normativo, que dão um sentido ao conteúdo jurídico posto. Servem como a conformação legítima dos valores sociais. Sendo assim, impedem que o aplicador aprecie o texto normativo em absoluta desconformidade com os valores normativamente estabelecidos, desconsiderando os anseios sociais mais legítimos.

No direito brasileiro, indubitavelmente os princípios são dotados de carga normativa, embora ainda haja algumas dificuldades na sua implementação através do Poder Judiciário, inapto a entender e atender as demandas sociais historicamente reprimidas.

No entanto, o aspecto que reputamos de maior interesse para o presente trabalho é o de que, no processo de formação do texto constitucional, o poder constituinte originário decorre da conjugação de uma infinidade de forças políticas, contrárias entre si ou em um mesmo sentido, em um determinado momento histórico, sendo a Constituição o documento resultante da conjugação dessas forças.

Tal fato implica que no texto constitucional, notadamente os descritivos, como é o caso da Constituição Federal de 1988, existam princípios que, aparentemente sejam antinômicos entre si.

E na aplicação desses princípios, supostamente antinômicos, é necessário que haja, por parte do aplicador do texto constitucional, uma apreciação dos princípios e valoração dos mesmos, para que, encontrando o valor albergado por cada uma nas normas, faça uma preceder a outra, embora isso não signifique que a norma precedida tenha deixado de fazer parte do ordenamento jurídico.

O próprio sistema faculta a precedência de um princípio em relação ao outro, para imposição da solução mais justa ao caso concreto.

Na aplicação, modulação dos princípios, o julgador deve guiar-se pela máxima da razoabilidade (proporcionalidade). A precedência de um princípio em relação ao outro pode ocorrer apenas e na medida do necessário à adoção da solução justa ao caso concreto. De acordo com Alexy:

“A norma mais fraca pode ser afastada apenas à medida que pareça necessário do ponto de vista lógico e sistemático; em todo caso, tem-se de respeitar seu conteúdo de valor fundamental concreto”.
A razoabilidade (proporcionalidade) tomada como princípio de aplicação das leis repousa no resultado sincrônico perfeito entre o posto da norma e o que dela é feita na experiência sócio política.

DA RAZOABILIDADE. O DEVIDO PROCESSO LEGAL MATERIAL

O princípio da razoabilidade tem sua origem e desenvolvimento ligado à garantia do devido processo legal, inscrita na Magna Charta, de 1215. Modernamente, a sua consagração se deu através das emendas 5ª e 14ª da Constituição dos Estados Unidos da América.

No país americano, o devido processo legal é marcado por duas fases: uma eminentemente formal, outra de cunho substancial, embora ambas subsistam e se completem até os dias de hoje. Ao lado da igualdade perante a lei, o princípio do devido processo legal foi grandemente utilizado como instrumento contra os abusos do poder legislativo e contra a discricionariedade administrativa naquele país.

A garantia do devido processo legal formal assegura ao cidadão a regularidade no processo judicial. Seu campo de incidência recai notadamente no direito ao contraditório e à ampla defesa.

O devido processo legal material, por sua vez, embora não seja de fácil compreensão, se traduz na idéia de justiça, de razoabilidade e expressão de um sentimento coletivo comum de determinada época. Na lição de Luiz Roberto Barroso:

“De toda a sorte, a clásula enseja a verificação da compatibilidade entre o meio empregado pelo legislador e os fins visados, vem como a aferição da legitimidade dos fins. Somente presentes essas condições poder-se-á admitir a limitação a algum direito individual. Aliás, tais direitos não se limitam aos que se encontram expressamente previstos no texto, mas também incluem outros, fundados nos princípios gerais de justiça e liberdade.”

E a razoabilidade, por sua vez, ainda de acordo com o citado mestre:

“ (...) é um parâmetro de valoração dos atos do Poder Público para aferir de se eles estão informados pelo valor superior inerente a todo ordenamento jurídico: a justiça. Sendo mais fácil de ser sentido do que conceituado, o princípio se dilui em um conjunto de proposições que não o libertam de uma dimensão excessivamente subjetiva. É razoável o que seja conforme a razão, supondo equilíbrio, moderação e harmonia; o que não seja arbitrário ou caprichoso; o que corresponda ao senso comum, aos valores vigentes em dado momento ou lugar.”

No Brasil, o princípio da razoabilidade ou do devido processo legal material está consagrado no artigo 5º, inciso LIV da Constituição Federal. Tal conformação determina que o intérprete da Constituição ao aplicá-la, sempre apure a razoabilidade da decisão a ser tomada no caso concreto.

Atento a essa exigência o Supremo Tribunal Federal, aplicando tal princípio, em caso paradigmático, suspendeu a vigência de Lei do Estado do Paraná que determinava a pesagem dos bujões de gás, à vista do consumidor, no ato da venda. A dificuldade material em cumprir a medida fez que com que a Corte constitucional decidisse pela irrazoabilidade da Lei.

Cumpre ainda aqui destacar que, embora utilizadas como sinônimas, como na doutrina alemã, alguns adotam critérios diferenciadores entre os princípios da razoabilidade e proporcionalidade, uma vez que, como dispõe Carmen Lúcia Antunes Rocha:

“É, pois, a razoabilidade diferente da proporcionalidade, que impede excessos na aplicação dos princípios constitucionais, pois aquela permite que se conheça o espírito destes princípios e acerte-se a sua interpretação e, conseguintemente, a sua aplicação, vale dizer, permite que se conheça o princípio considerado em si mesmo enquanto a proporcionalidade possibilita que se conheça em relação com os demais princípios e regras que compõe o sistema constitucional.” (Grifos do Autor)

Assim, a proporcionalidade nada mais seria do que o índice que permite a equiparação e valoração dos demais princípios constitucionais. No presente trabalho, adotamos o entendimento esposado pela Profa. Carmem Lúcia.

Na aplicação da máxima da razoabilidade, cabe ao interprete identificar qual dos valores albergados nos princípios em análise e que devem ser aplicados ao caso concreto para que a decisão seja mais justa possível.

Ocorre que, justamente no processo de apuração e valoração dos princípios com alta carga de subjetividade, reside problema de evidente complexidade e de difícil solução, uma vez que a indeterminabilidade de parâmetros objetivos é incompatível com o Estado Democrático de Direito.

Neste sentido o Prof. Walter Claudius Rothemburg defende o “sentir a constituição” por parte do aplicador do texto constitucional no momento da valoração, sem, contudo, propor que se abra mão do objetivismo normativo em favor de um intuicionismo jusfundamental.

Defende o Prof. Walter que:

“o acesso aos princípios se dá apenas por intermédio da razão, mas também da emoção. Dito de outro modo: o acesso à constituição não é só intelectual; também é afetivo. Os princípios que não conseguem ser perfeitamente formulados e compreendidos através da linguagem, conseguem, porém, traduzir sentimentos. Quiçá por isso a apreensão que se tenha dos princípios é, muita vez ou em parte, intuitiva; é uma impressão."

E completa:

“Para que o fenômeno de aplicação do direito não descambe para a irracionalidade (e acabe, talvez, por assentar-se no lastro da força bruta, econômica ou física), impõe-se; após a revelação da aceitação dessa dimensão não-intelectual dos valores, uma fundamentação racional e razoável.

Daí que é impossível uma visão exclusivamente intelectual dos princípios. Eles também são sentidos, experimentados no plano dos acessos. O acesso aos princípios não se dá somente por intermédio da razão, mas também da emoção.

De outro modo, o acesso à constituição não é somente intelectual, mas também afetivo. Por isso, a apreensão dos princípios é muitas vezes, ou em parte, intuitiva.

Nesse sentido, Paulo Bonavides apresenta o critério da proporcionalidade (razoabilidade) nos seguintes termos:

“o critério da proporcionalidade é tópico, volve-se para a justiça do caso concreto ou particular, se aparenta consideravelmente com a equidade e é um eficaz instrumento de apoio às decisões judiciais que, após submeterem o caso a reflexões prós e contras (Abwägung), a fim de averiguar se na relação entre meios e fins não houve excesso (Übermassverbot), concretizam assim a necessidade do ato decisório de correção. (Grifos do Autor)

O emprego do critério da proporcionalidade pode resultar sem dúvida no grave risco de um considerável reforço dos poderes do juiz, com a conseqüente diminuição do raio de competência elaborativa atribuída ao legislador.”

E arremata:

“Mas esse risco se atenua bastante quando o princípio da proporcionalidade, como via interpretativa entra em conexão com a chamada “interpretação conforme a Constituição” (...) Em outras, palavras, se houver a possibilidade de uma interpretação que faça transparecer a compatibilização da norma com a lei maior, há de prevalecer esta sobre as demais interpretações porventura cabíveis(...)” .

No entanto, em qualquer hipótese, para a aplicação dos princípios, é elementar que o julgador consiga demonstrar, objetiva, fundamentada e racionalmente os elementos da sua decisão.

Isto pois, se o motivo não existe ou dele o aplicador da Constituição concluiu de forma incompatível com os princípios aplicados ao caso, o ato será nulo, por inconstitucional.

Se é certo que “A lei às vezes degrada e avilta, corrompe e escraviza em ocasiões sociais e políticas de profunda crise e comoção, gerando a legalidade das ditaduras, ao passo que a Constituição é sempre a garantia do poder livre da autoridade legítima exercitada em proveito da pessoa humana”, e se “(...) só a Constituição liberta; unicamente ela devolve à cidadania a crença e a confiança na legitimidade do poder das leis”, como leciona Paulo Bonavides , certo é também que, “o antiformalismo, o discurso da suplantação do direito legal e o modismo do direito alternativo dos juizes legisladores foi assunto da ordem do dia, a experiência mostrou o alto custo social e político, em termos de segurança jurídica, dessa formulação que, no fundo, era a de um discurso anti-democrático ou no mínimo democraticamente cético.”, no dizer de Calmon de Passos .


DAS CRÍTICAS À APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA RAZOABILIDADE

O princípio da razoabilidade, tem sido duramente criticado, notadamente na Alemanha, sob vários aspectos. No presente tópico, entendo ser pertinente a crítica à aplicação ao princípio e a sua não sujeição ao Supremo Tribunal Federal, no controle de constitucionalidade suscitado no curso da demanda, como será demonstrado.

De acordo com a doutrina de Schmidt, citado por Paulo Bonavides, o emprego do princípio da razoabilidade ordinariamente demonstra evidente ausência de elementos objetivos aptos a ensejar alguma racionalidade à decisão. De acordo com o mesmo:

“O emprego do princípio da proporcionalidade, derivado do sistema de direitos fundamentais, representa quase sempre uma decisão, em última análise, difícil de fundamentar, que corresponde unicamente ao desejo e à vontade de quem toma a decisão, e por isso não pode pleitear reconhecimento geral.”

Wolfram Zitscher, por sua vez, também citado por Bonavides em seu Curso de Direito Constitucional diz que: “com o principio da proprocionalidade corre-se o risco de ver o Direito dissolvido na “justiça do caso particular”, comparando-se essa situação com aquela observada no século IV cujo resultado configurou na decadência e queda da cultura jurídica de baixa latinidade no Império Romano do Ocidente.”

Ressalte-se ainda o entendimento apresentado por Hans Huber, também citado naquela obra, que suscita a ameaça feita ao princípio da separação dos poderes, nos seguintes termos:

“De modo especial os princípios abertos de direito se tornam perigosos quando transpõe as respectivas fronteiras, abandonando dessa maneira seus conteúdos. É aí que eles favorecem os deslocamentos secretos de poder na organização do Estado, tais aqueles, por exemplo, ocorridos entre juiz e legislador e legislador e administrador, conforme há demonstrado.”

Sobre o tema, Xavier Philippe foi expresso ao preocupar-se com o rompimento da separação dos poderes em decorrência da aplicação do princípio da razoabilidade:

“O conteúdo fluido do princípio o autoriza, segundo seus detratores, a fazê-lo objeto de extensões incontroláveis. A invocação da proporcionalidade intervém como uma fórmula ritual eu serviria de álibi à jurisdição que o emprega, para questionar as decisões tomadas pelos diferentes órgãos (Legislativo, Executivo).”

E a preocupação é reforçada quando se observa que a transformação do princípio da razoabilidade em um chavão ou mero apelo à justiça, que não serve para decidir um problema jurídico, mas substituir as valorações objetivas sobre o texto Constitucional pelo subjetivismo do Juiz.

No caso brasileiro, reputamos da maior relevância a apreciação, pelo Supremo Tribunal Federal, da constitucionalidade e aplicação do princípio da razoabilidade, aplicada ao caso concreto, quando a questão em foco versar sobre a precedência de um princípio constitucional a outro.

A colisão e mitigação dos princípios trata-se de matéria que envolve diretamente a análise da valoração e do conteúdo normativo do texto constitucional.

E, não há dúvida de que “De todas as leis as que demandam maior inspeção, por isso mesmo que demandam o mais alto respeito, são as leis constitucionais; sua observância deve ser religiosa, pois que são o fundamento de todas as outras e da nossa existência e sociedade política”, conforme pontua Pimenta Bueno.

No entanto, o Supremo Tribunal Federal, ao interpretar o artigo 102, da Constituição Federal, que trata do Recurso Extraordinário, tem-se negado a apreciar questões ligadas à aplicação do princípio da razoabilidade ou do devido processo legal material, no controle de constitucionalidade em concreto, da decisão em que se aplicam princípios em face de valores consubstanciados no texto constitucional.

Segundo a reiterada jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, a hipótese configuraria violação reflexa e não direta ao texto constitucional, fato impeditivo do controle in concreto de constitucionalidade, por aquela Corte:

CONSTITUCIONAL – RECURSO EXTRAORDINÁRIO – OFENSA À CONSTITUIÇÃO – PROVA – Súmula 279-STF. I. – Somente a ofensa direta à Constituição autoriza a admissão do recurso extraordinário. No caso, o acórdão limita-se a interpretar normas infraconstitucionais. II. – Alegação de ofensa ao devido processo legal: ‘C.F., art. 5º, LV: se ofensa tivesse havido, seria ela indireta, reflexa, dado que a ofensa direta seria a normas processuais. E a ofensa a preceito constitucional que autoriza a admissão do recurso extraordinário é a ofensa direta, frontal. III. – Em relação à alínea c do art. 102, III, da Constituição Federal, também não merece acolhida o prosseguimento do recurso extraordinário. Incidência, no caso, das Súmulas 282 e 356-STF. IV. – O acórdão assenta-se na prova, que não se examina em recurso extraordinário (Súmula 279-STF). V. – Agravo não provido. (STF – AI-AgR 448046 – PR – 2ª T. – Rel. Min. Carlos Velloso – DJU 27.02.2004 – p. 00033)

No entanto, tal entendimento é por todo equivocado e deve de logo repensado.

Isto pois, tendo em vista que, na aplicação de princípios constitucionais colidentes, cabe ao intérprete a apreciação do conteúdo valorativo de cada um dos interesses envolvidos e a adequação desses valores ao caso concreto. E o aplicador simplesmente pode não estar “quantificando”, valorando de forma correta os ditos princípios, fato que por si só já determinaria o conhecimento do recurso pelo E. Supremo Tribunal Federal.

Ademais, no seu papel de corte constitucional, o Supremo Tribunal Federal não pode eximir-se na interpretação do texto normativo, muito menos, furtar-se ao papel de atribuir a correta carga valorativa aos princípios constitucionais suscitados pelas partes, notadamente pelo caráter impositivo dos referidos princípios.

Por outro lado, o Supremo Tribunal Federal também não pode furtar-se do seu papel de uniformização da jurisprudência nacional. Afinal, colide frontalmente com o princípio do Estado democrático de Direito, previsto no próprio texto constitucional, a coexistência de decisões absolutamente conflitantes, proferidas por diversos Tribunais, cujas hipóteses fáticas sejam iguais ou ao menos semelhantes.

Assim, deve-se registrar, nas críticas à aplicação do princípio da razoabilidade, a apreciação e ponderação dos demais princípios constitucionais, a omissão do Supremo Tribunal Federal, no caso brasileiro, na apreciação de tais decisões.

CONCLUSÃO


Como vimos, o sistema constitucional brasileiro consiste em um sistema aberto de regras e princípios no qual as regras estabelecem as hipóteses normativas descritivamente, enquanto os princípios servem como vetores dos valores consagrados no ordenamento jurídico pátrio.

No entanto, vimos que o texto constitucional decorre de um processo histórico, do qual a Constituição é o registro, em que é possível a existência de princípios aparentemente antinômicos entre si.

Ao intérprete e aplicador do texto constitucional, em caso de choque entre os princípios, cumpre, a ponderação dos valores albergados naquelas normas e a aplicação da mais justa ao caso concreto, seguindo as máximas da razoabilidade.

No entanto, ao tempo em que o princípio da razoabilidade favorece o processo de integração e atualização do sistema jurídico, outorga poderes ao aplicador da constituição que, se não for devidamente controlado, pode favorecer aos desvios.

No caso brasileiro, cumpre ao Supremo Tribunal Federal repensar o controle de constitucionalidade incidental, para que a questão da valoração e aplicação do princípio da proporcionalidade na modulação de princípios constitucionais, vinculados à própria carga axiológica da Constituição, não deixem de estar sujeitos ao seu crivo.

Afinal, se é certo o progresso do direito depende de um diálogo entre o coração e a mente, da mesma forma, é certo que no progresso do direito não podemos ser tão apaixonados a ponto de esquecermos a razão, nem tão racionais a ponto de perdermos de vista o seu próprio fim: o homem.





BIBLIOGRAFIA

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2. Bastos, Celso Ribeiro.Curso de Direito Constitucional. Celso Bastos Editora. São Paulo. 2002;
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4. Canotilho, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Almedina, 3ª Ed. Lisboa.
5. Horta, Raul Machado. Direito Constitucional. Del Rey. 2 ed. 1999.;
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7. Passos, José Joaquim Calmon de. Instrumentalidade do Processo e Devido Processo Legal. Revista de Processo102, ano 26, abril/junho 2001. p 58.
8. Rothemburg, Walter Claudius. Princípios Constitucionais. Sergio Fabris Editora. Segunda tiragem. Porto Alegre. P. 41.
9. Sampaio, José Adércio Leite Sampaio. Jurisdição Constitucional e Direitos Fundamentais. Del Rey. Belo Horizonte.2003;
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