domingo, 10 de abril de 2011

O CRIME DE “REDUÇÃO À CONDIÇÃO ANÁLOGA DE ESCRAVO” E O CUMPRIMENTO DE DIREITOS TRABALHISTAS

Tercio Roberto Peixoto Souza


Sumário: 1. INTRODUÇÃO. 2. DA CONSTITUIÇÃO COMO MATRIZ DO SISTEMA JURÍDICO. 3. O TRABALHO ESCRAVO NO CÓDIGO PENAL. 4. DO TRABALHO EM CONDIÇÃO DIGNA. 5. CONCLUSÃO

1. INTRODUÇÃO

Inegável a relevância dada ao valor do trabalho humano no Texto Constitucional. A Constituição Federal de 1988 enuncia alguns princípios, apresentados como aptos a assegurar o desenvolvimento nacional, através da soberania econômica nacional.

No capítulo destinado à ordem econômica, houve expressa menção de que aquela é fundada na valorização do trabalho humano e na iniciativa privada. Isso significa, conforme leciona JOSÉ AFONSO DA SILVA, na enunciação de que o Estado brasileiro é capitalista, mas a ordem econômica atribui absoluta relevância aos valores do trabalho humano. E essa prioridade tem o sentido de orientar a intervenção do Estado na economia.

A liberdade de iniciativa envolve a liberdade de indústria e comércio, ou liberdade de empresa e de contrato. Como dito, no período do total liberalismo, tal liberdade assegurava aos proprietários a possibilidade de regular suas relações do modo que lhe tivessem por mais convenientes.

No contexto Constitucional, no entanto, a liberdade de iniciativa está condicionada ao fim da “justiça social”.

Como menciona JOSÉ AFONSO DA SILVA, a iniciativa privada “será ilegítima quando exercida com objetivo de puro lucro e realização pessoal do empresário”

Assim, não é nova a conclusão de que o Texto Constitucional estabelece como parâmetros para o sistema produtivo a função social da propriedade, dos bens de produção, da empresa, do poder econômico.

Na lição de EROS GRAU:

“O princípio da função social da propriedade, para logo se vê, ganha substancialidade precisamente quando aplicado à propriedade dos bens de produção, ou seja, na disciplina jurídica da propriedade de tais bens, implementada sob compromisso com a as destinação. A propriedade sobre a qual em maior intensidade refletem os efeitos do princípio é justamente a propriedade, dinâmica, dos bens de produção. Na verdade, ao nos referirmos à função social dos bens de produção em dinamismo, estamos a aludir à função social da empresa”

Por isso, o Prof. WASHINGTON LUIZ DA TRINDADE menciona que “a mudança distingue-se pela superação do individualismo pelo primado social, em que até o contrato, instrumento de conciliação de vontades individuais, vira, na expressão de Khalil, um fato social”

Nesse contexto, o Direito do Trabalho deve servir como importante instrumento de composição entre interesses contrapostos: o do trabalhador e o do capitalista.

A imposição de direitos mínimos aos trabalhadores deve assegurar justamente a dignidade daquele que somente possui como meio de sobrevivência a sua força de trabalho.

Em contraponto com tal entendimento, o fenômeno da imposição de escravidão ao trabalhador surge como a violação extrema aos seus direitos sociais.

Trata-se de uma das mais severas restrições aos direitos dos trabalhadores, e que por isso mesmo deve ser duramente combatida.

O presente ensaio visa elucidar algumas questões postas em relação ao tipo penal previsto no art. 149 do Código Penal, cujo nomen júris é “redução a condição análoga à de escravo”, com a redação que lhe foi atribuída em 2003, por meio da Lei 10.803, de 11 de dezembro.

2. DA CONSTITUIÇÃO COMO MATRIZ DO SISTEMA JURÍDICO

Não se pode jamais perder de vista que é do Texto Constitucional que irradiam todos os valores que nutrem o sistema jurídico, notadamente aqueles que limitam o poder do Estado, tais como os previstos na ciência do Direito Tributário ou do Direito Penal.

De fato, é a partir da leitura do Texto Constitucional que se obtém com alguma clareza os valores necessários à aplicação prática das regras incriminadoras, previstas na legislação penal, ou expropriantes previstas na legislação tributária.

Apesar das severas críticas que lhe tem sido apresentadas, o que seria comprovado pela própria abundância de Emendas Constitucionais e da inadequação de alguns direitos nela encartados , não há dúvida acerca do caráter democrático do Texto Constitucional de 1988.

Os valores consagrados na Carta Magna visam, sem qualquer dúvida, o alcance de uma sociedade mais justa, na qual o bem estar do ser humano teria sido colocado como finalidade maior.

Daí a importância de impor-se condições mínimas para o desenvolvimento das relações de trabalho, para a consagração de uma sociedade mais justa e igual.

Cumpre aqui mencionar o entendimento apresentado por EDILTON MEIRELES , no sentido de que:
“A Constituição Brasileira de 1988 se apresentou como produto das forças políticas que a formularam, sendo ela portadora de um projeto que consagrou a ruptura com ordem anterior. Neste caminho, a Constituição de 1988, como instrumento transformador, buscou romper com o nosso passado autoritário e com a ordem econômica liberal. E essa ruptura fica bem clara nos arts. 1º e 3º da CF. A ruptura com o passado autoritário se concretizou com a fundação do Estado Democrático de Direito (art. 1º da CF), fundado na cidadania e no pluralismo político (incisos II e V do art. 1º), tendo como um dos objetivos fundamentais a criação de uma sociedade livre e promotora do bem de todos sem qualquer distinção (incisos I e IV do art. 3º da CF). Para concretizar o projeto de Estado Democrático de Direito, o constituinte, então, destacou os seus valores fundamentais: a liberdade e a igualdade, elevando-os ao grau mais alto de proteção, como instrumentos de concretização da democracia representativa.”

Aquele Mestre menciona ainda que o Constituinte elegeu o trabalho como instrumento de transformação, elevando-o a valor relevante na nova ordem social.

Isso porque, ainda de acordo com aquele, para se alcançar uma nova homogeneidade social, o trabalho é o instrumento de mobilidade social, pois através dele se promove uma maior e eqüitativa distribuição dos bens e rendas entre as diversas classes.

Para tanto, ainda em sede constitucional, é possível identificar um sistema de garantias ao trabalho, através do qual assegura-se aos seus principais sujeitos os direitos trabalhistas fundamentais, individuais e coletivos, bem como formulando princípios protecionistas, como facilmente se identifica no art. 7º da CF, através do seu elenco de direitos constitucionais trabalhistas, fundado no princípio da proteção.

Garantiu-se, no Texto Constitucional, a proteção social, num processo de integração sócio-econômica dos trabalhadores.

Ainda fundado nas lições de EDILTON MEIRELES, podemos mencionar que tem-se identificado as garantias de formação de uma política agrícola que assegure a habitação ao trabalhador rural (inciso VIII do art. 187), as ações de proteção à saúde do trabalhador (inciso II do art. 200), a proteção do meio ambiente do trabalho (inciso VIII do art. 200), a proteção do trabalhador em desemprego involuntário (inciso III do art. 201), a promoção da integração dos necessitados ao mercado de trabalho (inciso III do art. 203), a política de educação com formação para o trabalho (inciso IV do art. 214), a proteção do menor trabalhador (incisos I a III do § 3º do art. 227), além da proteção dada pela previdência social, entre outras.”

Nesse contexto, pois, indaga-se qual seria o papel do Direito Penal, na concretização dos direitos sociais ora referidos.

Hoje desenvolve-se fortemente a noção de Estado de Direito Democrático e Social, baseado no princípio da proteção do bem jurídico como fator preponderante para a incriminação de condutas e em um Direito Penal pautado na subsidiariedade, na intervenção mínima, no garantismo, na individualização da responsabilidade.

E justamente neste diapasão serve o Texto Constitucional como a régua na medida dos valores socialmente postos.

Àquilo o que se apontou na Carta Constitucional a sociedade, o Estado, ou seja, a iniciativa privada e pública devem obediência.

Não poderia, então, nem o Estado, nem tampouco o particular, atuar em desencontro com tais valores.

Sobre o ponto, cumpre citar o entendimento apresentado por EVANDRO PELARIN, quando fala do Direito Penal nesse contexto:

“ Como acentuou LUISI, os princípios “especificamente penais” visam à afirmação dos direitos do homem e do cidadão e à limitação do papel do Estado a garantir a efetivação e a eficácia dos mencionados direitos”

Assim, parece que o Direito Penal está legitimado à tutela dos interesses ora discutidos.

3. O TRABALHO ESCRAVO NO CÓDIGO PENAL

Antes de falar precisamente acerca do tipo penal previsto no art. 149 do Código Penal, faz-se necessária uma abordagem acerca da questão do trabalho escravo.

Como faz referência GABRIELA NEVES DELGADO , a Declaração Universal dos Direitos Humanos, em seu art. 4º, determina que “ninguém será mantido em escravidão ou em servidão; a escravidão e o tráfico de escravos serão proibidos em todas as suas formas”.

No mesmo sentido, a própria Constituição Federal de 1988 proíbe o trabalho forçado, até mesmo para efeito do cumprimento de pena, como facilmente se depreende no art. 5º, inciso XLVII.

Ainda como referido por aquela Professora, o trabalho realizado em condições análogas à de escravo é um dos principais exemplos de exploração humana na contemporaneidade, antítese do direito fundamental ao trabalho digno.

Como leciona NELSON HUNGRIA, nos seus comentários ao Código Penal, sob o nome de plagium, o direito romano punia a escravização do homem livre bem como a compra e venda ou assenhoramento do escravo alheio.

Com efeito, há muito estava consagrado no Código Penal, mais especificamente em seu art. 149, o tipo assim vazado: “Art. 149. Reduzir alguém a condição análoga de escavo: Pena – reclusão, de dois a oito anos”.

Tal dispositivo teve a sua redação alterada pela Lei nº. 10.803/2003, para ficar assim estabelecido:

“Art. 149 – Reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto: Pena – reclusão, de dois a oito anos, e multa, além da pena correspondente à violência. § 1º - Nas mesmas penas incorre quem: I – cerceia o uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho; II – mantém vigilância ostensiva no local de trabalho ou se apodera de documentos ou objetos pessoais do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho. § 2º - A pena é aumentada de metade, se o crime é cometido: I – contra criança ou adolescente; II – por motivo de preconceito de raça, cor, etnia, religião ou origem.”

A alteração legislativa, segundo alguns, decorreu do fato de que o tipo penal antes apresentado era por demais vago, o que praticamente inviabilizava a sua aplicação prática.

Assim, editou-se a nova redação do aludido dispositivo, contra a qual severas críticas tem sido direcionadas. Embora não seja o escopo do presente, não podemos deixar de fazer referência ao fato de que muitas críticas têm sido direcionadas à nova redação, notadamente ao fato de que a Lei enunciou meios e formas pelas quais o crime poderia ser praticado e acrescentou-se majorantes, o que acabou por gerar condição especial para a prática do crime (a relação ou um vínculo trabalhista), e a execução, que antes era livre, passou a ser praticado apenas nas hipóteses previstas na lei.

No presente trabalho, não se tratará acerca de eventuais impropriedades redacionais ou sistemáticas do tipo em referência, uma vez que o escopo pretendido é apuração do princípio da dignidade humana como valor enunciado naquele dispositivo.

Para tanto, inicia-se a abordagem fazendo referência ao fato de que, ao comentar o dispositivo, em sua redação original, NELSON HUNGRIA já dizia que o crime de que ora se trata é a completa sujeição de uma pessoa ao poder de outra. Nele, visa-se a proteção do status libertatis, ou seja, a liberdade no seu conjunto de manifestações.

Aponta o mestre que entre o agente o sujeito passivo se estabelece uma relação tal, que o primeiro se apodera totalmente da liberdade pessoal do segundo, ficando este reduzido, de fato, a um estado de passividade idêntica àqueles que viviam em cativeiro.

Nesse contexto, importante a evidenciação do conceito de trabalho escravo, de acordo com o que consta do artigo 2°, item 1, da Convenção n° 29 da OIT, que menciona ser o trabalho forçado ou obrigatório, todo trabalho ou serviço exigido de um indivíduo sob ameaça de qualquer penalidade e para o qual ele não se ofereceu de espontânea vontade.

Ou seja, igualmente sob o ponto de vista daquela Organização Internacional a nota característica do conceito, então, seria a liberdade individual.

Note-se, ademais, que entre as situações-tipo identificadas pelo Código Penal, houve sensível avanço, pois ampliou-se o bem jurídico protegido não somente em relação ao trabalho forçado, mas igualmente em relação ao trabalho em condições degradantes.

Ao tratar da matéria, GUILHERME DE SOUZA NUCCI, diz que o trabalho forçado é critério para se identificar o tipo do art. 149 do Código Penal, conceituando-o como a atividade desenvolvida de maneira compulsória, sem voluntariedade, pois implica em alguma forma de coerção caso não desempenhada a contento.

Justamente por isso, segundo se enuncia, o Crime acima, cujo nomen juris é “Redução a condição análoga à de escravo” estaria agrupado no Capítulo VI do Código Penal, em que se trata justamente dos Crimes contra a liberdade individual.

Como leciona ELA WIECKO V. DE CASTILHO :

“No crime de redução a condição análoga à de escravo a lei expressa que o bem jurídico protegido é a liberdade pessoal. Ensina Hungria que "as diversas liberdades asseguradas ao homem e cidadão não são mais que faces de um mesmo poliedro: a liberdade individual. A primeira e mais genérica expressão desta é a liberdade pessoal, assim chamada porque diz mais diretamente com a afirmação da personalidade humana. Compreende o interesse jurídico do indivíduo à imperturbada formação e atuação de sua vontade, à sua tranqüila possibilidade de ir e vir, à livre disposição de si mesmo ou ao seu status libertatis, nos limites traçados pela lei. Trata-se, em suma, do direito à independência de injusto poder estranho sobre a nossa pessoa"

Sobre a questão da liberdade, notável é o posicionamento de FRANZ VON LIST , para quem a liberdade pessoal, no direito penal, tem por escopo a proteção da livre manifestação da vontade.

Segundo ainda o mestre alemão, a liberdade individual pode ser ofendida sob tantas formas independentes quantos são os diversos modos do seu exercício.

Contudo, enuncia que a ofensa à liberdade, como livre manifestação da vontade, pode ser quanto: a) ao impedimento de que a vontade seja exercida de acordo com certa direção (constrangimento); b) o impedimento oposto à livre locomoção (seqüestração da liberdade) e; c) sujeição de uma pessoa ao poder físico de outra (tráfico de escravos).

No que pertine ao quesito liberdade individual, a jurisprudência tem reconhecido a sua violação com a imposição de relação de dependência firmada entre as vítimas e seu agenciador, seja por intermédio de pressão psicológica, seja pela retenção de documentos ou de outros meios aptos a ensejar temor aos sujeitos passivos do crime.

Ainda de acordo com os Tribunais Pátrios, o tipo referido não visa uma situação jurídica, mas, sim, a um estado de fato.

Tanto que, segundo menciona, o crime pode ser praticado de variados modos, sendo mais comum o uso de fraude, retenção de salários, ameaça ou violência, mas não se limitando a tais circunstâncias.

De acordo com CEZAR ROBERTO BITENCOURT, a sujeição completa de uma pessoa ao poder da outra suprime, de fato, o status libertatis, caracterizando a condição análoga à de escravo, embora o status libertatis, de direito permaneça inalterado.

Segundo aquele, não se trata, pois, de simples encarceramento ou confinamento, mas de toda e qualquer situação em que se estabeleça a submissão da vítima à posse e dominação de outrem.

4. DO TRABALHO EM CONDIÇÃO DIGNA

Ocorre que, da leitura da redação do mencionado artigo 149 do Código Penal, como já mencionado, observa-se que o trabalho em condições análogas às de escravo deve ser considerado gênero, no qual se subdivide, como espécies, o trabalho forçado e o trabalho em condições degradantes.

Ou seja, não é somente a falta de liberdade, o trabalho forçado, ou na classificação de VON LIST, o constrangimento, que se adéqua ao tipo referido, mas igualmente o trabalho em circunstâncias degradantes.

Não por outra razão, de acordo com a lição de CEZAR BITENCOURT, o bem jurídico protegido no aludido tipo penal é não somente a liberdade individual, mas também a dignidade pessoal do trabalhador.

Como bem faz referência o mestre “reduzir alguém a condição análoga à de escravo, fere, acima de tudo, o princípio da dignidade humana, despojando-o de todos os seus valores éticos-sociais, transformando-o em res, no sentido concebido pelos romanos.”

E arremata:
“Reduzir alguém a condição análoga à de escravo equivale a suprimir-lhe o direito individual de liberdade, deixando-o completamente submisso aos caprichos de outrem, e exatamente aí reside a essência desse crime, isto é, na sujeição de uma pessoa a outra, estabelecendo uma relação entre sujeito ativo e sujeito passivo análogo à escravidão: o sujeito ativo, qual senhor e dono, detém a liberdade do sujeito passivo em suas mãos”

Aliás, quanto à questão do consentimento do paciente do crime referido, há muito NELSON HUNGRIA menciona que: “é de todo ineficaz o consentimento do paciente. Ninguém pode abdicar, total e indefinidamente do seu stauts libertatis, pois tanto importaria a anulação da própria personalidade.”

Ou seja, ainda no que pertine à liberdade individual, HUNGRIA já reconhecia ser absolutamente irrelevante o consentimento do ofendido. Nesse mesmo sentido, MIRABETE, DELMANTO, BITENCOURT E NUCCI.

Nesse sentido, ainda, tem se manifestado as cortes pátrias, evidenciando que a conduta criminosa prevista no art. 149 do Código Penal consiste na sujeição de uma pessoa ao domínio do agente, que restringe a liberdade e a própria personalidade do indivíduo.

Mas igualmente se encontra em tal posição aquele que tem sido privado das mais elementares garantias constitucionais, vivendo em condições subumanas, cumprindo jornada de trabalho excessiva, sofrendo descontos injustificados nas suas remunerações, por exemplo, sendo irrelevante o consentimento da vítima

Com efeito, como já mencionado, o Trabalho está intimamente vinculado à manutenção da dignidade humana e não pode ser utilizado como instrumento para promoção da desigualdade.

Como mencionado por JOSÉ CLAUDIO MONTEIRO DE BRITO FILHO, enunciando mais concretamente no que se configuraria o trabalho em condições degradantes, se poderia identificar tal configuração naquela atividade em que há a falta de garantias mínimas de saúde e segurança, além da falta de condições mínimas de trabalho, de moradia, higiene, respeito e alimentação.

A manutenção de condições mínimas de trabalho, previstas no texto constitucional, trata-se de evidente direito de cunho social, que visa assegurar um mínimo de igualdade entre os indivíduos.

Como faz referência, DIRLEY CUNHA JUNIOR:

“Como já enfatizado, os direitos de defesa são aqueles que demarcam um âmbito de proteção ao indivíduo, pondo-o a alvo de qualquer investida abusiva por parte do Estado. Criam, assim, verdadeiras posições subjetivas que outorgam ao sujeito o poder de exercer positivamente os próprios direitos (liberdade positiva) e de exigir omissões dos poderes estatais e de particulares, de modo a evitar agressões lesivas por parte deles (liberdade negativa)”

A máxima da valorização do trabalho humano impõe a manutenção de condições mínimas de sobrevivência dos trabalhadores. Ou seja, não há como serem limitados os direitos a tal ponto que se comprometa a própria vida e saúde do trabalhador e da sua família.

Nota-se, assim que, apesar das críticas referidas, parece adequada a incriminação da conduta no que pertine à manutenção do trabalho em condições subumanas.

Nesse mesmo sentido, cumpre fazer referência também ao Anteprojeto da Parte Especial do Código Penal, de 1992, no qual, como bem referido por ELA WIECKO V. DE CASTILHO, a escravidão nas relações de trabalho mereceu tratamento especial, passando a integrar o Capítulo até agora inexistente, denominado "dos crimes contra a dignidade da pessoa humana", mantido no Título "dos crimes contra a pessoa".

5. CONCLUSÃO

Parece legítima, portanto, a incriminação da conduta ora referida. Com efeito, a redução do ser humano à condição análoga à de escravo não pode ser tolerada sob qualquer prisma.

Além de reduzir o seu igual à condição de coisa, o sujeito ativo do crime referido vale-se de um dos mais relevantes instrumentos de transformação social, o trabalho, para a manutenção da miséria e da desigualdade.

Por si só, tal conduta já deveria ser rechaçada.

De outro modo, a sujeição do trabalhador a condições absolutamente indignas de trabalho, com a violação à própria dignidade humana, igualmente autoriza a atuação do Direito Penal.

Com efeito, aparentemente não viola os princípios encartados na Carta Magna, dentre os quais os da subsidiariedade e fragmentariedade, a imposição do crime referido.

De fato, não há dúvida de que a dignidade humana é posta como um dos principais fundamentos do Estado Nacional. E assim sendo, parece claro que todos os instrumentos devam ser colocados à disposição para a satisfação de tais valores.

Dessa forma, parece coerente com os valores apontados no ordenamento nacional a incriminação da conduta que viola tão duramente a dignidade humana, retirando do trabalhador um dos poucos bens que lhe resta: a sua condição de ser humano!

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