domingo, 1 de maio de 2011

O CASO CONCRETO E O PRINCÍPIO DA RAZOABILIDADE NA HERMENEUTICA CONSTITUCIONAL

Tércio Roberto Peixoto Souza ; Lise Nery Mota e Milena Borges e Britto

SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. O Pensamento Sistemático e a Decidibilidade. 3. Sistema Jurídico: normas e princípios. 4. A Razoabilidade e o Devido Processo Legal Material. 5. Das Críticas à Aplicação do Princípio da Razoabilidade. 6. À Guisa de Conclusão. 7. Referências.


RESUMO: O princípio da razoabilidade favorece o processo de interpretação, integração e atualização do sistema jurídico e outorga poderes ao aplicador da Constituição que, se não for devidamente controlado, pode favorecer o surgimento de desvios. O presente trabalho objetiva analisar a utilização do princípio da razoabilidade (ou do devido processo legal material), na aplicação dos demais princípios constitucionais consubstanciados na Constituição Federal brasileira de 1988.

Palavras-chave: princípio; razoabilidade; hermenêutica; constituição.


ABSTRACT: The principle of reasonableness facilitates the process of interpretation, integration and upgrade of the legal system and gives the applicator of the Constitution powers that, if left unchecked, may encourage the emergence of diversions. This paper aims to examine the use of the principle of reasonableness (or the material due legal process), in the implementation of other constitutional principles embodied in the Brazilian Federal Constitution of 1988.

Keywords: principle; reasonableness; hermeneutics; constitution.

Uma relação jurídica supõe uma situação participante de múltiplos sentidos ou conexões estimativas, que são pertinentes ao Direito. Os elementos de uma vinculação social contêm (positiva ou negativamente) vários valores: a justiça exige que o direito regule essa situação de maneira tal, que entre as concretizações de valores contidas em cada sujeito se dê a proporcionalidade que existe objetivamente entre os valores.

Recasens Siches

1. INTRODUÇÃO

Ao longo dos anos, o operador do Direito passou a repensar sua função social, que deixou de ser a de aplicar, estritamente, o que está prescrito na lei (dura lex sed lex...), para construir a regra de conduta que regulará a vida da sociedade. Em face dessa mudança de paradigma, a atividade dos juristas se mostra cada vez mais vinculada a critérios de Hermenêutica, mais especificamente àqueles fundados no valor tutelado pela norma jurídica e que ensejam a denominada interpretação axiológica.

O sistema jurídico do Estado de Direito brasileiro é um sistema aberto de regras e princípios, em que as regras, por sua especificidade, tratam o sistema constitucional de forma descritiva e minudente, enquanto os princípios, dado o seu caráter geral e plasticidade, servem como meio de ligação que dão a unicidade necessária ao sistema normativo.

Na aplicação dessas normas, sejam princípios ou regras, cabe ao intérprete ter em vista sempre a potencialização máxima da ordem constitucional. A partir de tal fato, cumpre-lhe sempre avaliar a carga normativa de cada dispositivo da Constituição, dando-lhe operatividade plena.

No entanto, sendo o Poder Constituinte originário fruto da conjugação de inúmeras forças políticas em um dado momento histórico, é evidente o surgimento de eventuais princípios ou regras de aparente antinomia, dentro do texto normativo constitucional.

Neste processo, diante do caso concreto, cabe ao intérprete avaliar qual o mais importante dos interesses em jogo, fazendo com que, naquela hipótese, uma norma preceda a outra, usando-se do princípio da razoabilidade (proporcionalidade).

No presente artigo, será tratado o emprego do princípio da razoabilidade (ou do devido processo legal material), na aplicação dos demais princípios constitucionais consubstanciados na Constituição Federal de 1988.

Algumas críticas são feitas à aplicação exarcebada do princípio da razoabilidade/proporcionalidade no processo de interpretação do texto constitucional, seja pela dificuldade em ser apurada, de forma objetiva, a correção do posicionamento do aplicador da norma constitucional ao caso concreto; seja pelo risco de instituir-se um governo de juízes, ou mesmo que o sistema normativo passe à mera casuística, sem uma unidade axiológico-normativa.

2. O PENSAMENTO SISTEMÁTICO E A DECIDIBILIDADE

Tendo em vista a necessidade de se criar condições de decidibilidade, o jurista, pautado num pensamento dogmático, passou a adotar uma postura voltada para o cumprimento do preceito contido na proibição do non liquet, vale dizer, “da compulsoriedade de uma decisão”.

Como diz Tércio Sampaio Ferraz, para o saber dogmático não há questões indecidíveis. Pode-se não saber qual a decisão que será tomada diante de um conflito, mas se sabe, desde logo, que uma decisão ocorrerá.

Sendo assim, ao enfrentar as questões de decidibilidade, a concepção clássica, embasada no positivismo jurídico , levou Hans Kelsen e Hart a terem uma noção estrita do sistema jurídico.

Esse sistema compreenderia exclusivamente um conjunto de normas, caracterizando-se, portanto, como um pensamento voltado a uma tradicional racionalidade formal.

Como menciona Eros Grau, citando Kelsen, a norma individual que expressa a decisão judicial de um caso concreto pode ser influenciada por princípios morais, políticos ou dos costumes, mas tem como fundamento de validade o princípio formal, de direito positivo, da força da coisa julgada, e não qualquer daqueles outros princípios. Nenhum destes princípios pode fundamentar a validade da decisão judicial; apenas uma norma geral positiva poderá fazê-lo. (...) Esses princípios – morais, políticos ou dos costumes – consubstaciam, entre outros, os motivos do legislador, não sendo juridicamente obrigatórios; por isso não preenchem as características das normas jurídicas.

Complementando esse raciocínio, Perelman indaga que:

A teoria pura do direito, segundo Hans Kelsen, se caracteriza por um intransigente dualismo que opõe, de um lado, o ser ao dever-ser, a realidade ao valor, o conhecimento à vontade (e, conjuntamente, as ciências da natureza às ciências do espírito, à natureza à sociedade, assim como a causalidade à imputabilidade) e, de outro, o direito à moral, e o direito positivo ao direito natural. A ciência do direito, por ser o conhecimento do direito positivo, tem de eliminar implacavelmente todas as considerações que são, por essência, alheias as seu objeto e introduzem subrepticiamente, por intermédio de ideologias de toda espécie, posicionamentos vinculados à política jurídica, fazendo-os passar por resultados cognitivos, pertencentes à ciência do direito.

Com o intuito de estabelecer uma mudança de paradigma, Esser, Larenz, Canaris apresentaram um modelo de sistematização jurídico voltado para uma racionalidade material ou valorativa (razoabilidade).

Passou-se de um sistema de lógica-formal para uma forma de racionalidade aplicada aos valores, compondo, assim, um sistema jurídico formado não apenas por um conjunto de normas; mas, de normas e princípios.

Para Josef Esser, embora oponha norma e princípio, sustentando não configurarem estes últimos, em si mesmos, mandamentos (isto é, instruções, regras), mas sim a causa, critério de justificação deles, reconhece constituírem eles direito positivo. Mas direito positivo constituem – prossegue – não como regras independentes ou autônomas, porém como condição imanente do ser e do funcionar das regras.

Nessa mesma esteira, Karl Larenz diz que a distinção, na verdade, opera a separação não entre tipos de princípios, mas sim entre espécies de norma jurídica. Se tomarmos como critério a presidir a ponderação do tema, verificaremos não que os princípios abertos não configuram norma jurídica, mas sim que os princípios com forma de proposição jurídica estruturalmente são regras – guardando, porém, em seus conteúdos, o caráter de princípios – e aqueles, os princípios abertos, em seus conteúdos conservando o caráter de princípios, não são, estruturalmente regras.

Seguindo esse mesmo caminho, Claus Wilhelm Canaris adverte que:
Duas características afastariam os princípios das regras. Em primeiro lugar, o conteúdo axiológico: os princípios, ao contrário das regras, possuiriam um conteúdo axiológico explícito e careceriam, por isso, de regras para sua concretização. Em segundo lugar, há o modo de interação com outras normas: os princípios, ao contrário das regras, receberiam seu conteúdo de sentido somente por meio de um processo dialético de complementação e limitação.

Entretanto, foi a tradição anglo-saxônica, através de Ronald Dworkin, que conferiu decisiva contribuição na definição dos princípios.

O estudo do ilustre pensador acabou por realizar um ataque geral ao Positivismo (general attack on Positivism), principalmente em relação à forma aberta de argumentação permitida pela aplicação do que ele definiria como princípios (principles). Diante disso, estabeleceram-se critérios de diferenciação mais específicos entre regras e princípios. É o que será analisado a partir de agora.


3. SISTEMA JURÍDICO: NORMAS E PRINCÍPIOS

Estruturalmente, pode-se apresentar as normas jurídicas em sentido lato (gênero) como sendo o conjunto formado por normas em sentido estrito (ou regras – como também são chamadas por alguns doutrinadores) e os princípios (espécies).

Neste momento, cabe diferenciar cada um desses tipos, para uma melhor compreensão do tema que nos propusemos a enfrentar nesta pesquisa.

Ronald Dworkin preleciona que denomina ‘princípio’ um padrão que deve ser observado, não porque vá promover ou assegurar uma situação econômica, política ou social considerada desejável, mas justamente porquanto é uma exigência de justiça ou eqüidade ou alguma outra dimensão da moralidade .

Na tradicional lição de Celso Antônio Bandeira de Melo, os princípios poderiam ser considerados como:
(...) mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas compondo-lhe o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência, exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá sentido harmônico.

Diante disso, poder-se-ia, inicialmente e de forma sintética, distinguir os princípios e as normas em sentido estrito, por alguns critérios:

1) A norma possui uma estrutura formal composta por uma hipótese e uma conseqüência, ou seja, envolve uma prescrição específica. Já os princípios, devido ao elevado teor de abstração (por expressar uma máxima valorativa próxima ao ideário de justiça) não trazem regras de comportamentos definidos.

Neste ponto, cumpre mencionar que as meras regras jurídicas, como diz Alexandre Santos Aragão, apesar de genéricas e abstratas, dizem respeito a situações hipotéticas específicas que, concretizando-se na vida prática, acarretam determinadas conseqüências jurídicas. Trata-se do conhecido esquema “preceito-sanção”, pelo qual, ocorrendo o fato previsto na regra, a ele devem suceder os efeitos jurídicos nela também, já de antemão, estabelecidos. O mecanismo de aplicação dos princípios é muito mais complexo do que o esquema binário característico das regras. Não prevêem situações determinadas e, muito menos, efeitos jurídicos específicos que delas decorreriam. É óbvio que normatizam situações e que podem acarretar efeitos jurídicos, mas, devido ao seu caráter fluido, suas conseqüências, além de não poderem ser previamente estabelecidas, dependem das características de cada situação concreta e dos demais princípios que forem pertinentes.

2) A norma obedece, na sua aplicação, às regras de validez, aplicando-se totalmente ou tendo a sua aplicação negada pelo sistema (critério do “all or nothing”). Em contrapartida, os princípios têm sua aplicabilidade definida de acordo com o caso concreto, ou seja, levando-se em conta uma lógica de valores, de legitimidade. Daí porque, eles poderão ser aplicados apenas parcialmente.

Nesse sentido, Dworkin afirma que a diferença entre princípios jurídicos e regras jurídicas é de natureza lógica. Os dois conjuntos de padrões apontam para decisões particulares acerca da obrigação jurídica em circunstâncias específicas, mas distinguem-se quanto a natureza da orientação que oferecem. As regras são aplicáveis à maneira do tudo-ou-nada. Dados os fatos que uma regra estipula, então ou a regra é válida, e neste caso a resposta que ela fornece deve ser aceita, ou não é válida, e neste caso em nada contribui para a decisão.

3) Não há conflito abstrato entre princípios. Só há conflito no caso concreto, que vai ser decidido de forma razoável. Porém, existe, entre as normas, conflito abstrato, onde há exclusão de uma norma por outra que lhe contrarie (regras de exclusão de antinomias).

Os princípios possuem uma dimensão que as regras não têm – a dimensão do peso ou importância. Quando os princípios se intercruzam, aquele que vai resolver o conflito tem de levar em conta a força relativa de cada um. (...) As regras não têm essa dimensão. Podemos dizer que as regras são funcionalmente importantes ou desimportantes. Nesse sentido, uma regra jurídica pode ser mais importante do que outra porque desempenha um papel maior ou mais importante na regulação do comportamento. Mas não podemos dizer que uma regra é mais importante que outra enquanto parte do mesmo sistema de regras, de tal modo que se duas regras estão em conflito, uma suplanta a outra em virtude de sua importância maior. Se duas regras entram em conflito, uma delas não pode ser válida.

Nesse diapasão, Canaris conclui que os princípios não valem sem exceção e podem entrar em oposição ou em contradição entre si. Esta característica não precisa de explicação; é para os juristas um fenômeno seguro o de que, às decisões fundamentais da ordem jurídica, subjazem muitas exceções e de que os princípios singulares não poucas vezes levam a decisões contrárias.

Por tudo quanto foi exposto, percebe-se que os princípios funcionam como elementos fundamentais e norteadores das normas, de modo a auxiliá-las em sua sistematização e interpretação.

Exercem, desta forma, função de eixo de organização normativa, de forma que a sua função não é estabelecer uma normatização objetiva e previsível. A sua grande riqueza está exatamente na maleabilidade que propicia em relação às demais normas do ordenamento jurídico e diante das situações complexas da vida, insuscetíveis de serem resolvidas pela singela aplicação de regras lógico-subsuntivas. .


4. A RAZOABILIDADE E O DEVIDO PROCESSO LEGAL MATERIAL

O princípio da razoabilidade tem sua origem e desenvolvimento ligado à garantia do devido processo legal, inscrita na Magna Charta, de 1215. Modernamente, a sua consagração se deu através das emendas 5ª e 14ª da Constituição dos Estados Unidos da América.

No país americano, o devido processo legal é marcado por duas fases: uma eminentemente formal, outra de cunho substancial, embora ambas subsistam e se completem até os dias de hoje. Ao lado da igualdade perante a lei, o princípio do devido processo legal foi grandemente utilizado como instrumento contra os abusos do poder legislativo e contra a discricionariedade administrativa naquele país.

A garantia do devido processo legal formal assegura ao cidadão a regularidade no processo judicial. Seu campo de incidência recai notadamente no direito ao contraditório e à ampla defesa.

O devido processo legal material, por sua vez, embora não seja de fácil compreensão, se traduz na idéia de justiça, de razoabilidade e expressão de um sentimento coletivo comum de determinada época.

Segundo Luiz Roberto Barroso, de toda a sorte, a cláusula enseja a verificação da compatibilidade entre o meio empregado pelo legislador e os fins visados, vem como a aferição da legitimidade dos fins. Somente presentes essas condições poder-se-á admitir a limitação a algum direito individual. Aliás, tais direitos não se limitam aos que se encontram expressamente previstos no texto, mas também incluem outros, fundados nos princípios gerais de justiça e liberdade.

E nesse contexto a razoabilidade é um parâmetro de valoração dos atos do Poder Público para aferir de se eles estão informados pelo valor superior inerente a todo ordenamento jurídico: a justiça. Sendo mais fácil de ser sentido do que conceituado, o princípio se dilui em um conjunto de proposições que não o libertam de uma dimensão excessivamente subjetiva. É razoável o que seja conforme a razão, supondo equilíbrio, moderação e harmonia; o que não seja arbitrário ou caprichoso; o que corresponda ao senso comum, aos valores vigentes em dado momento ou lugar.

No Brasil, o princípio da razoabilidade ou do devido processo legal material está consagrado no artigo 5º, inciso LIV da Constituição Federal . Tal conformação determina que o intérprete da Constituição ao aplicá-la, sempre apure a razoabilidade da decisão a ser tomada no caso concreto.

Atento a tal exigência o Supremo Tribunal Federal, aplicando tal princípio, em caso paradigmático, suspendeu a vigência de Lei do Estado do Paraná que determinava a pesagem dos bujões de gás, à vista do consumidor, no ato da venda. A dificuldade material em cumprir a medida fez que com que a Corte constitucional decidisse pela irrazoabilidade da Lei.

Cumpre ainda aqui destacar que, embora utilizadas como sinônimas, como na doutrina alemã, alguns adotam critérios diferenciadores entre os princípios da razoabilidade e proporcionalidade, uma vez que, como dispõe Carmen Lúcia Antunes Rocha a razoabilidade seria diferente da proporcionalidade, a qual impede excessos na aplicação dos princípios constitucionais, pois aquela permite que se conheça o espírito destes princípios e acerte-se a sua interpretação e, conseguintemente, a sua aplicação, vale dizer, permite que se conheça o princípio considerado em si mesmo enquanto a proporcionalidade possibilita que se conheça em relação com os demais princípios e regras que compõe o sistema constitucional.

Assim, a proporcionalidade nada mais seria do que o índice que permite a equiparação e valoração dos demais princípios constitucionais. No presente trabalho, adota-se o entendimento esposado pela professora Carmem Lúcia.

Na aplicação da máxima da razoabilidade, cabe ao interprete identificar qual dos valores albergados nos princípios em análise e que devem ser aplicados ao caso concreto para que a decisão seja mais justa possível.

Ocorre que, justamente no processo de apuração e valoração dos princípios com alta carga de subjetividade, reside problema de evidente complexidade e de difícil solução, uma vez que a indeterminabilidade de parâmetros objetivos é incompatível com o Estado Democrático de Direito.

Neste sentido Walter Claudius Rothemburg defende o ‘sentir a constituição’ por parte do aplicador do texto constitucional no momento da valoração, sem, contudo, propor que se abra mão do objetivismo normativo em favor de um intuicionismo jusfundamental.

Defende ainda Walter Claudius que o acesso aos princípios se dá apenas por intermédio da razão, mas também da emoção. Dito de outro modo: o acesso à constituição não é só intelectual; também é afetivo. Os princípios que não conseguem ser perfeitamente formulados e compreendidos através da linguagem, conseguem, porém, traduzir sentimentos. Quiçá por isso a apreensão que se tenha dos princípios é, muita vez ou em parte, intuitiva; é uma impressão.
E, ao tratar do tema da fundamentação no processo hermenêutico, diz ainda que para que o fenômeno de aplicação do direito não descambe para a irracionalidade (e acabe, talvez, por assentar-se no lastro da força bruta, econômica ou física), impõe-se; após a revelação da aceitação dessa dimensão não-intelectual dos valores, uma fundamentação racional e razoável.

Daí observa-se que é impossível uma visão exclusivamente intelectual dos princípios. Eles também são sentidos, experimentados no plano dos acessos. O acesso aos princípios não se dá somente por intermédio da razão, mas também da emoção. De outro modo, o acesso à Constituição não é somente intelectual, mas também afetivo. Por isso, a apreensão dos princípios é muitas vezes, ou em parte, intuitiva.

Nesse sentido, Paulo Bonavides apresenta o critério da proporcionalidade (razoabilidade) como tópico, ou seja, volve-se para a justiça do caso concreto ou particular, se aparenta consideravelmente com a equidade e é um eficaz instrumento de apoio às decisões judiciais que, após submeterem o caso a reflexões prós e contras (Abwägung), a fim de averiguar se na relação entre meios e fins não houve excesso (Übermassverbot), concretizam assim a necessidade do ato decisório de correção.

Ocorre, porém, como diz Paulo Bonavides, que o emprego do critério da proporcionalidade pode resultar, sem dúvida, no grave risco de um considerável reforço dos poderes do juiz, com a conseqüente diminuição do raio de competência elaborativa atribuída ao legislador.

Contudo, pondera ainda que esse risco se atenua bastante quando o princípio da proporcionalidade, como via interpretativa entra em conexão com a chamada ‘interpretação conforme a Constituição’ (...) Em outras, palavras, se houver a possibilidade de uma interpretação que faça transparecer a compatibilização da norma com a lei maior, há de prevalecer esta sobre as demais interpretações porventura cabíveis.

No entanto, em qualquer hipótese, para a aplicação dos princípios, é elementar que o julgador consiga demonstrar, objetiva, fundamentada e racionalmente os elementos da sua decisão, o seu critério hermenêutico.

Isto, pois, se o motivo não existe ou dele o intérprete da Constituição concluiu de forma incompatível com os princípios aplicados ao caso, o ato será nulo por ser inconstitucional.

Se é certo que a lei às vezes degrada e avilta, corrompe e escraviza em ocasiões sociais e políticas de profunda crise e comoção, gerando a legalidade das ditaduras, ao passo que a Constituição é sempre a garantia do poder livre da autoridade legítima exercitada em proveito da pessoa humana, e se, só a Constituição liberta; unicamente ela devolve à cidadania a crença e a confiança na legitimidade do poder das leis, como leciona Paulo Bonavides , certo é também que, o antiformalismo, o discurso da suplantação do direito legal e o modismo do direito alternativo dos juizes legisladores foi assunto da ordem do dia, a experiência mostrou o alto custo social e político, em termos de segurança jurídica, dessa formulação que, no fundo, era a de um discurso anti-democrático ou no mínimo democraticamente cético, no dizer de Calmon de Passos .


5. DAS CRÍTICAS À APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA RAZOABILIDADE

O princípio da razoabilidade tem sido duramente criticado, notadamente na Alemanha, sob vários aspectos.

No presente tópico, entende-se ser pertinente a crítica à aplicação ao princípio e a sua não sujeição ao Supremo Tribunal Federal, no controle de constitucionalidade suscitado no curso da demanda (“in concreto”), como será demonstrado.

De acordo com a doutrina de Schmidt, citado por Paulo Bonavides, o emprego do princípio da razoabilidade ordinariamente demonstra evidente ausência de elementos objetivos aptos a ensejar alguma racionalidade à decisão. Isso porque o emprego do princípio da proporcionalidade, derivado do sistema de direitos fundamentais, representa quase sempre uma decisão, em última análise, difícil de fundamentar, que corresponde unicamente ao desejo e à vontade de quem toma a decisão, e por isso não pode pleitear reconhecimento geral.

Wolfram Zitscher, por sua vez, também citado por Paulo Bonavides menciona que com o principio da proporcionalidade corre-se o risco de ver o Direito dissolvido na Justiça do caso concreto, comparando-se essa situação com aquela observada no século IV cujo resultado configurou na decadência e queda da cultura jurídica de baixa latinidade no Império Romano do Ocidente .

Ressalte-se ainda o entendimento apresentado por Hans Huber que suscita a ameaça feita ao princípio da separação dos poderes já que transpõe as respectivas fronteiras, abandonando dessa maneira seus conteúdos. É aí que eles favorecem os deslocamentos secretos de poder na organização do Estado, tais aqueles, por exemplo, ocorridos entre juiz e legislador e legislador e administrador, conforme há demonstrado.

Sobre o tema, Xavier Philippe foi expresso ao preocupar-se com o rompimento da separação dos poderes em decorrência da aplicação do princípio da razoabilidade:

O conteúdo fluido do princípio o autoriza, segundo seus detratores, a fazê-lo objeto de extensões incontroláveis. A invocação da proporcionalidade intervém como uma fórmula ritual eu serviria de álibi à jurisdição que o emprega, para questionar as decisões tomadas pelos diferentes órgãos (Legislativo, Executivo).

E a preocupação é reforçada quando se observa a transformação do princípio da razoabilidade em um chavão ou mero apelo à Justiça, que não serve para decidir um problema jurídico, mas substituir as valorações objetivas sobre o texto constitucional pelo subjetivismo do juiz.

No caso brasileiro, reputa-se da maior relevância a apreciação, pelo Supremo Tribunal Federal, da constitucionalidade e aplicação do princípio da razoabilidade, aplicada ao caso concreto, quando a questão em foco versar sobre a precedência de um Princípio Constitucional a outro.

A colisão e mitigação dos princípios trata-se de matéria que envolve diretamente a análise da valoração e do conteúdo normativo do Texto Constitucional.

E, não há dúvida de que “De todas as leis as que demandam maior inspeção, por isso mesmo que demandam o mais alto respeito, são as leis constitucionais; sua observância deve ser religiosa, pois que são o fundamento de todas as outras e da nossa existência e sociedade política”, conforme pontua Pimenta Bueno.

No entanto, o Supremo Tribunal Federal, ao interpretar o artigo 102, da Constituição Federal, que trata do Recurso Extraordinário, tem-se negado a apreciar questões ligadas à aplicação do princípio da razoabilidade ou do devido processo legal material, no controle de constitucionalidade em concreto, da decisão em que se aplicam princípios em face de valores consubstanciados no Texto Constitucional.

Segundo a reiterada jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, a hipótese configuraria violação reflexa e não direta ao Texto Constitucional, fato impeditivo do controle in concreto de constitucionalidade, por aquela Corte:

CONSTITUCIONAL. RECURSO EXTRAORDINÁRIO. OFENSA À CONSTITUIÇÃO. PROVA. SÚMULA 279 - STF.
I. – Somente a ofensa direta à Constituição autoriza a admissão do recurso extraordinário. No caso, o acórdão limita-se a interpretar normas infraconstitucionais.
II. – Alegação de ofensa ao devido processo legal: ‘C.F., art. 5º, LV: se ofensa tivesse havido, seria ela indireta, reflexa, dado que a ofensa direta seria a normas processuais. E a ofensa a preceito constitucional que autoriza a admissão do recurso extraordinário é a ofensa direta, frontal.
III. – Em relação à alínea c do art. 102, III, da Constituição Federal, também não merece acolhida o prosseguimento do recurso extraordinário. Incidência, no caso, das Súmulas 282 e 356-STF. IV. – O acórdão assenta-se na prova, que não se examina em recurso extraordinário (Súmula 279-STF).
V. – Agravo não provido.
(BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Agravo Regimental n. 448046/PR; Segunda Turma; Relator: Min. Carlos Velloso. Publicado em: 27 fev. 2004).

No entanto, tal entendimento é por todo equivocado e deve de logo ser repensado.

Isto, pois, tendo em vista que, na interpretação de Princípios Constitucionais colidentes, cabe ao intérprete a apreciação do conteúdo valorativo de cada um dos interesses envolvidos e a adequação desses valores ao caso concreto.

O aplicador pode não estar, simplesmente, “quantificando”, valorando de forma correta os ditos princípios, fato que por si só já determinaria o conhecimento do recurso pelo E. Supremo Tribunal Federal.

Ademais, no seu papel de corte constitucional, o Supremo Tribunal Federal não pode eximir-se na interpretação do texto normativo, muito menos, furtar-se ao papel de atribuir a correta carga valorativa aos Princípios Constitucionais suscitados pelas partes, notadamente pelo caráter impositivo dos referidos princípios.

Por outro lado, o Supremo Tribunal Federal também não pode furtar-se do seu papel de uniformização da jurisprudência nacional.

Afinal, colide frontalmente com o princípio do Estado democrático de Direito, previsto no próprio Texto, a coexistência de decisões absolutamente conflitantes proferidas por diversos Tribunais, cujas hipóteses fáticas sejam iguais ou ao menos semelhantes.

Assim, deve-se registrar, nas críticas à aplicação do princípio da razoabilidade, a apreciação e ponderação dos demais princípios constitucionais, a omissão do Supremo Tribunal Federal na apreciação de tais decisões.

6. Á GUISA DE CONCLUSÃO

Como visto, o sistema constitucional brasileiro consiste em um sistema aberto de regras e princípios no qual as regras estabelecem as hipóteses normativas descritivamente, enquanto os princípios servem como vetores dos valores consagrados no ordenamento jurídico pátrio.

No entanto, viu-se que o texto constitucional decorre de um processo histórico, do qual a Constituição é o registro, em que é possível a existência de princípios aparentemente antinômicos.

Ao intérprete e aplicador do texto constitucional, em caso de choque entre os princípios, cumpre a ponderação dos valores albergados naquelas normas e a aplicação da mais justa ao caso concreto, seguindo as máximas da razoabilidade.

No entanto, ao tempo em que o princípio da razoabilidade favorece o processo de interpretação, integração e atualização do sistema jurídico, outorga poderes ao aplicador da Constituição que, se não for devidamente controlado, pode favorecer o surgimento de desvios.

No caso brasileiro, cabe ao Supremo Tribunal Federal repensar a própria hermenêutica da jurisdição constitucional, notadamente no que pertine ao controle de constitucionalidade incidental, para que a questão da valoração e aplicação do princípio da proporcionalidade na modulação de princípios constitucionais, vinculados ao caso concreto e, por conseqüência, à própria carga axiológica da Constituição, não deixem de estar sujeitos ao seu crivo.

Afinal, se é certo o progresso do Direito depende de um diálogo entre o coração e a mente, da mesma forma, é certo que no progresso do direito não se pode ser tão apaixonado a ponto de esquecer a razão, nem tão racionais a ponto de perder de vista o seu próprio fim: o homem.

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